Despojados, empobrecidos, diminuídos, destruídos,
persistem, na sua existência, com uma energia que é tanto mais objecto da minha
– e penso que de muitos – admiração, porquanto desprezo os que, longe de serem
os dejectos da sociedade, vivem deles, obtendo os seus favores, ao mesmo tempo
que oslisonjeiam – todos esses a quem este estado de coisas e esta miséria não
revolta minimamente,miséria que circunscreveram denominando-a conjuntural,
enquanto afirmam que ela provém forçosamente da crise, quer dizer de um estado
excepcional e passageiro, quando a miséria é estrutural e é originada pelo modo
como se efectua a distribuição social, e, portanto, política, dos bens e dos
recursos, dos valores e das riquezas.
A que são poupados os cidadãos? A terem de dormir em
túmulos ardentes, a serem arrastados nos rios de sangue fervente e
transformados em árvores que choram e gemem, a deitar-se sob uma chuva de fogo,
chicoteados por diabos, mergulhados de cabeça para baixo em buracos circulares,
a planta dos pés queimada pelas chamas, a serem molhados pela pez a arder ou
arpoados por demónios, mordidos por serpentes, quando não trespassados pela
espada dos diabos.
É verdade, mas se isso não acontece, é porque teríamos
simplesmente grande dificuldade em encontrar diabos, demónios, sangue em
profusão ou mágicos capazes de transfigurar as dores vividas em queixas
vegetais.
Pois, no campo metafórico, o sangue, o fogo e as
lágrimas, os golpes e os vexames não faltam num país onde triunfa a lei da
selva capitalista.
Que fizeram eles para merecerem estes sofrimentos
infamantes? Porque se lhes nega, até este ponto, qualquer figura humana,
qualquer estatuto da dignidade?
Aqueles que vivem na luxúria ou gulodice, avareza ou
cólera, fraude, sedução, adulação, simonia ou tráfico, peculato, hipocrisia,
roubo ou perfídia. Foram por acaso cismáticos, falsários,, alquimistas,
falsificadores ou traidores?
Nada disso, que até é, com frequência e na maioria das
vezes, o lote e o quotidiano daqueles a quem devem a sua degradação. Então?
Então nada, eles são apenas os resíduos sociais, os
dejectos do corpo social que festeja sem eles, apesar, graças e contra eles.
A sua culpa? Não serem utilizados pela comunidade,
ser-lhes tudo recusado, serem rejeitados por todo o lado, devido à sua decretada
inutilidade.
Sub-homens desejados como tal por aqueles que
frequentemente são precisamente os que descorticam os artigos da Declaração dos
Direitos Humanos ou que escarnecem da excelência de todas as constituições
possíveis e imagináveis.
A miséria suja, essa que é fedorenta e nauseabunda, que
enoja e revolta o estômago, é consequência do funcionamento da máquina social,
é reciclagem das saliências, uma produção daquilo que, até em Platão, devido à
sua extrema baixeza – como as unhas, os cabelos ou a porcaria – jaz como puro
fenómeno, sem correspondência inteligível.
Degradação entrópica do único ser existente: o ser social
e as máquinas que o acompanham.
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