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quinta-feira, 28 de fevereiro de 2013

«CARTA A PROPÓSITO DE CERTOS IMPASSES»



Sempre pensei, meu caro amigo, que, cheio de amor pela sua terra, se aplicaria aí à arte do desprendimento, do desprezo, do silêncio. Imagine qual não foi a minha surpresa quando ouvi dizer que se ia dedicar à política, embora num assunto de que o creio apto, ou seja, a cultura.

No mesmo instante, vi desenhar-se na sua pessoa o futuro monstro: o político em que se ia tornar, dizendo para comigo: “mais um que se vai perder”.

Por pudor, o amigo absteve-se de me perguntar as razões da minha decepção; também fui incapaz de lhas comunicar de viva voz.

“Mais um que se vai perder, mais um que se vai arruinar devido ao seu talento”, repetia para comigo sem descanso.

Penetrando no inferno político, conheceu os respectivos artifícios e veneno; arrancado ao imediato, caricatura de si próprio, restar-lhe-ão apenas experiências formais, indirectas, se não souber arrepiar caminho a tempo: a sua pessoa desvanecer-se-á na palavra.

Tornar-se-á em mais um a ser severamente criticado, deixando de ser os livros o tema das suas conversas.

Quanto aos literatos, deles não tirará proveito algum. Só que será tarde de mais quando disso se der conta, após ter perdido o melhor dos seus anos num mewio destituído de espessura e de substância.

O literato? Um indiscreto que desvaloriza as suas misérias, as divulga, as repisa: o impudor – exibição de pensamentos reservados – é a sua regra; ele é alguém que se oferece. Todas as formas de talento são acompanhadas de certa sem-cerimónia, como a que usou referindo-se às facturas, por exemplo do corte de cabelo no seu barbeiro habitual.

Distinto, é-o apenas o estéril, aquele que se apaga com o seu segredo, porque desdenha exibi-lo: os sentimentos expressos são uma dor para a ironia, uma bofetada no humor.

Conservar o seu próprio segredo, nada de mais frutuoso. O segredo trabalha-o, corrói-o, ameaça-o. Mesmo quando se dirige a Deus, a confissão é um atentado contra nós próprios, contra as energias do nosso ser.

As perturbações, as vergonhas, os medos, de que as terapêuticas profanas ou religiosas pretendem libertar-nos, constituem um património de que por nenhum preço deveríamos desfazer-nos.

Temos de nos defender contra os que nos curam e, ainda que pereçamos por isso, preservar os nossos males e os nossos pecados.

Não o maço mais, limitando-me a felicitá-lo, não pela sua doença, que o fez resignar – e o termo está na moda – e regressar à sua vida normal e retomar as suas reais actividades sem mais pensar em carreira política. Ah, já agora, as suas melhoras rápidas.

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