Os danos são longínquos e os hábitos ancestrais, pois
encontramos na Antiguidade matéria que nos faz compreender o que fundamenta
esta religião da economia. Ela supõe a primazia da mercadoria sobre o homem e
poder-se-ia chamar síndrome de Hecatão ao princípio desta doença particular.
Precisemos: único Tratado sobre os deveres, perdido mas comentado e criticado por Cícero. Hecatão ensinava que entre a salvação de um terceiro e a conservação do nosso próprio interesse devemos sempre optar pela segunda solução.
Por exemplo, em caso de penúria, devemos primeiro dar de
comer aos nossos escravos, arriscando-nos a pôr em perigo os nossos próprios
proveitos, meios de produção ou a nossa quantidade de bens? Ou devemos querer o
contrário? Se casualmente nos encontramos no alto mar, num barco que mete água
por estar demasiadamente carregado, se formos obrigados a ter de escolher entre
sacrificar um cavalo de raça nobre ou um escravo de pouco valor, quem devemos
largar pela borda fora?
Hecatão responde sem pestanejar: é preciso preferir o interesse pessoal à humanidade. Água e pão seco para o escravo, antes de passá-lo pela amurada do navio na próxima viagem. Deste modo o proprietário poderá dormir descansado, não muito longe dos seus dracmas e da sua pileca preferida. Ao escravo cabe-lhe regressar à fileira dos danados da terra, antes de ser lançado para o Aqueronte.
O síndrome de Hecatão atinge os que praticam a economia
como uma actividade separada e que entendem como a ciência dos bens, das
riquezas, que excluiu o homem e a humanidade dos seus objectos de estudo, das
suas preocupações.
Pior ainda: é também aquilo de que padecem os que crêem
que a actividade económica se pode praticar apesar dos homens, até mesmo contra
eles e o seu bem-estar.
Primado generalizado do ter sobre o ser, prioridade
cardeal aos interesses, aos benefícios, às vantagens obtidas em espécies
líquidas sobre qualquer outro valor, eis o que faz do aluno de Panetius de
Rodes um percursor, um Calliclés da economia que fez fortuna através das eras,
dos séculos.
Nesta ordem de ideias, a economia vem primeiro e só
depois vem a política, ao seu serviço. Primeiramente o dinheiro e a conservação
das riquezas materiais existentes, em seguida o que restar. Nada, a maior parte
do tempo.
A ética das empresas ou dos empreendedores, a moral dos
industriais ou dos proprietários, a axiomática dos produtores ou dos
capitalistas, as virtudes dos economistas ou dos banqueiros, eis o rosário de
oxímoros.
Na realidade, a nossa época celebra a prática da economia
como uma actividade separada, até como uma disciplina que exclui as demais – a política
tanto como a ética.
Daí o talento gasto por essas pessoas para povoar e
semear as terras infernais.
O síndrome de Hecatão mostra, profundamente, como em
matéria de fundação de tudo o que é essencial numa civilização, o inaugural é
fundado sobre um sacrifício e a sua duração assegurada por um holocausto
continuamente reiterado.
O sacrifícoo e o holocausto têm como vítimas designadas,
imolados em sacrifícios e fetiches proprietários,, todos os que são destruídos
no sistemade produção.
Quem calculará um dia, as dores, os tormentos, os males,
os sofrimentos, as torturas, as mutilações, as doenças? Quem marcará o ponto
das danações, das exclusões e das condenações? Quem falará das sentenças de
morte, das sangrias e das carnificinas que são devidas a esta religião da
economia separada?
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