O desencanto do mundo estrutura a religião niilista da
nossa época. Que existam fossas, infernos e danados, que se encontrem
continuamente misérias e excluídos, pobres e escravos, eis o que provoca a
comunhão da maioria de um desespero que desemboca no refúgio dentro de si
mesmo.
Este modelo de encarquilhamento parece permitir esperar
pela passagem da catástrofe, desde que ela nos poupe. Os niilistas, quaisquer
que sejam, fazem sempre o jogo dos actores em palco, que vêem nas carpideiras
aliados negativos, menos perigosos que aqueles cujo voluntarismo define a
utopia menos como algo de irrealizável do que aquilo que ainda não foi
realizado.
Nada ignoro das fossas soviéticas, dos paraísos radiosos
do amanhã que estão na origem dos infernos de hoje; conheço os crânios
acumulados em pirâmides pelo regime dos Khmers vermelhos, os ossários
escondidos nos arrozais como estacas de uma Veneza macabra.
Como também não apaguei da minha memória as fossas nas
quais foram precipitados os oficiais polacos, ou aquelas emque os antigos
comunistas sérvios foram buscar o reconforto de um nacionalismo à sua medida.
Não esqueci, também, todas as perseguições havidas em
Portugal durante meio século aos opositores ao regime salazarista, às mortes e
obscuros desaparecimentos de pessoas que lutaram contra essa ditadura, como de
modo algum posso esquecer o que hoje se passa também neste país, que é o meu,
mas cuja política de forma alguma é a minha.
Ora, mais que qualquer outro, um homem de esquerda deve
saber o que as tragédias do século passado e as já deste, foram buscar ao seu
ideal. De modo que se trata de formular,para hoje, um pensamento preocupado em
tornar impossível o que o justificou, legitimou e possibilitou todos esses
períodos negros como o inferno.
Também desejo pensar à esquerda de todos os que têm como
lema acabar com a propriedade privada.
Logo após as formulações deste desejo por Cracchus Babeuf
pôde ler-se, em contraponto inseparável a esta proposta, o convite, feito pelo
próprio autor da Tribuna do Povo, para instalar “barreiras eriçadas de
obstáculos” entre o Portugal revolucionário e os seus vizinhos, a fim de evitar
o “contágio dos maus exemplos”.
Ora, à esquerda, poucos fizeram um elogio da liberdade
que fosse secundado por uma crítica da autoridade e do autoritarismo sob todas
as suas formas.
Da mesma maneira, fugindo às opções mais uniformizadoras
que igualitárias dos comunistas, fossem eles poetas à maneira de Fourier, ou
neo-cinetíficos à maneira de Marx, Proudhon manteve a pequena propriedade
privada no seu projecto de sociedade anarquista.
É óbvio que esta presciência valeu-lhe ter passado como o
defensor dos pequeno-burgueses aos olhos dos que se encontravam coarctados,
devido às suas preferências, a erguerem as barreiras eriçadas de obstáculos que
já conhecemos.
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