Entre
deixar os filhos passar fome e pagar ao Fisco, um desempregado decidiu não
pagar. Nesta terça-feira entrega exposição ao provedor de Justiça. Os juristas
dividem-se.
Alcides
Santos, 46 anos, desempregado: “A minha obrigação é resistir”
Alcides Santos, um gestor de sistemas informáticos que está no
desemprego há dois anos, entrega nesta terça-feira na Provedoria da Justiça uma
carta onde explica o seguinte: vai deixar de pagar impostos. Nem IMI, pela casa
onde habita, nem IRS e IVA, sobre um biscate que fez há uns meses. Invoca o
artigo 21 da Constituição da República Portuguesa — o artigo que define o
Direito de Resistência — para defender a legitimidade da sua decisão. Alega que
acima dos seus deveres como contribuinte está o dever de não deixar os filhos
passar fome.
O que pode ser abrangido pelo Direito de Resistência estipulado
na Constituição é algo que, como é norma em matérias legais, divide os
juristas. Como os impostos contestados por Alcides Santos foram aprovados pela
Assembleia da República, e não existindo até agora qualquer parecer em
contrário do Tribunal Constitucional, não se pode entender que o seu pagamento
seja “uma ordem que ofenda os direitos dos indivíduos, nem uma força que deva
ser repelida”, defende o constitucionalista Tiago Duarte, para quem esta
iniciativa está assim “completamente à margem” do que é evocado no artigo 21 da
Constituição.
“E
o que pode fazer uma pessoa que é taxada por um imposto que não pode pagar, que
é obrigada a cumprir o que não pode cumprir, senão resistir?”, contrapõe o juiz
jubilado do Supremo Tribunal de Justiça, António Colaço.
O
juiz entende que esta é uma opção constitucional para um “desempregado que está
no limiar da pobreza, que tem pessoas a cargo, e que já não pode fazer nada
mais para inverter a situação de penúria em que se encontra”.
Alcides
Santos escreve o seguinte no texto que quer fazer chegar ao provedor Alfredo
José de Sousa: “Existe uma inegável hierarquia de valores que exige que eu faça
o necessário para garantir a sobrevivência física dos meus filhos, dos meus
pais e de mim próprio (o que se aplica a qualquer pessoa que se encontre na
minha situação), a qual estará sempre acima das obrigações fiscais e, mais do
que isso, encontra-se salvaguardada pelo artigo 21 da Constituição.”
“Queria cumprir”
Este desempregado vive na Moita, com a mulher e os dois filhos, numa casa que está a pagar ao banco: 400 euros por mês. O prazo do subsídio de 1150 euros que recebia acabou no mês passado. Este mês, diz, a família tem 600 euros para sobreviver — o ordenado da mulher, que trabalha num call center.
Desse
bolo, 400 vão para pagar a casa e sobram 200 para tudo o resto. Com um filho de
15 anos, a frequentar o ensino secundário, e outro de 23, que está na
faculdade, Alcides deu consigo, há duas semanas, a olhar para as contas. Já usa
o cartão de crédito para pagar coisas básicas — “Estou a viver acima das minhas
possibilidades porque não quero que os meus filhos passem fome”, ironiza o
informático que, no seu último emprego, ganhava 2200 euros mensais.
Há
uns meses, fez “um biscate” — e passou o respectivo recibo: cerca de 750 euros.
Agora tem que pagar 158 euros de IVA e 79 euros de IRS. Foi para esse recibo
que, há duas semanas, começou a olhar.
Sentado
num banco do jardim público que fica em frente do prédio onde vive, continua:
“Quando estamos no desemprego acontece uma coisa: temos muito tempo”,
inclusivamente para ler a Constituição de uma ponta à outra. “Comecei a olhar
para os papéis e a pensar: eu não consigo pagar isto. Bom... a minha formação é
Matemática. O meu trabalho é arranjar solução para os problemas.” Voltou a ler
a Constituição.
“O
Governo não está a cumprir com o artigo que assegura o Direito ao Trabalho” e
que incumbe o Estado de executar políticas de pleno emprego, argumenta. “Eu sou
o produto dessa decisão do Governo. Por isso não consigo cumprir com as minhas
obrigações. Sempre cumpri, e queria cumprir, mas agora tenho que optar:
alimentar os meus filhos ou cumprir.” Para já, este homem que já esteve
associado a organizações como o Movimento dos Sem Emprego gostaria que o
provedor de Justiça se pronunciasse sobre a sua exposição. O passo que se segue
pode ser informar o Fisco da razão pela qual não vai pagar. Para além disso,
admite ter de informar outras entidades da mesma decisão — companhia da água,
da luz, do gás. Porque acredita que, a manter-se na situação em que está,
acabará por não conseguir liquidar essas facturas.
Um acto de “desespero”
Por desconhecer a situação e os argumentos exactos apresentados por Alcides Santos, o constitucionalista Gomes Canotilho escusou-se hoje a comentar este caso em concreto, mas lembra que o Direito de Resistência, conforme consignado na Constituição, se reporta à defesa dos “direitos, liberdades e garantias” do indivíduo, um lote que poderá não abranger o Direito ao Trabalho que, segundo Alcides Santos, lhe está a ser negado.
A
acção deste desempregado estará talvez mais próxima da desobediência civil, um
conceito que, lembra, nem todos consideram ser coberto pelo Direito de
Resistência. Mas Gomes Canotilho consegue ler nela o “desencanto e o desespero”
face a uma “tributação que atingiu quase níveis usurpatórios” e que, em
conjunto com as taxas que devem ser pagas por serviços como a água e a
electricidade, se impõem como “intervenções restritivas, que têm de ser
justificadas quanto à sua necessidade, utilidade e proporcionalidade”, defende.
“Qualquer
cidadão pode discordar do que se encontra estipulado na lei, mas não tem o
direito de não a cumprir. Se entende que a lei é inconstitucional tem meios no
ordenamento jurídico para reagir, seja por via do Tribunal Constitucional, seja
por recurso ao provedor de Justiça”, argumenta, por seu lado, Tiago Duarte,
frisando que o Direito de Resistência se aplica apenas a “situações limite”.
Aquelas em que, em simultâneo, a Administração Pública age contra a lei e em
que os cidadãos não têm tempo útil para recorrer aos tribunais: é o que
aconteceria, por exemplo, se agentes policiais decidissem retirar alguém à
força de sua casa sem qualquer motivo legal, acrescenta.
Já
António Colaço insiste que o Direito de Resistência existe quando se trata de
defender “um bem ou para evitar um mal maior” do que a situação que o motivou.
Acrescenta que no caso do desemprego, por exemplo, justifica-se por se destinar
a evitar o que lhe pode sobrevir: a miséria e actos desesperados, como o
suicídio.
Há
algumas semanas, Alcides Santos preencheu os impressos para pedir o subsídio
social de desemprego (que pode suceder o de desemprego). Espera uma resposta.
Trabalho
estável, tem pouca esperança de arranjar. Quando, há dois anos, o contrato que
tinha terminou, achou que ia arranjar o que fazer, como sempre tinha acontecido
até ali. Mas acabou por ter que se conformar com a ideia de que “o mercado
mudou” e os informáticos já não têm a mesma saída. “Até porque há miúdos a
trabalhar de graça.”
Da
sua ideia de resistir é que não desiste. “A minha obrigação é resistir”,
escreveu no e-mail que esta semana enviou às redacções.
Os tiranos e o bem comum
O Direito de Resistência em matéria fiscal foi alvo de um acórdão aprovado em 2003, por unanimidade, pelo Supremo Tribunal Administrativo (STA) e tem sido retomado em outras deliberações.
A
propósito de uma taxa que a Câmara de Lisboa pretendia cobrar a uma empresa por
um acto que, entretanto, fora anulado, o STA lembrou naquele seu acórdão que o
“privilégio da execução prévia” (execução de uma dívida antes da ordem do
tribunal) não se aplica aos “actos de liquidação de tributos”. Mas, nestes
casos, defendeu, a oposição dos contribuintes deve ser feita, precisamente,
através do recurso aos tribunais, sendo este considerado “o meio processual
adequado para a concretização do direito de resistência defensiva”.
Em
Portugal, foi a invocação do direito de resistência, na sua interpretação mais
lata, “que legitimou juridicamente a Restauração do 1.º de Dezembro de 1640”,
sustenta Pedro Calafate, professor de Filosofia na Universidade de Lisboa. No
pensamento dos Conjurados imperava a doutrina escolástica “segundo a qual Deus
é a origem do poder enquanto autor da natureza social do homem”.
“Mas
trata-se de uma origem em abstracto, porque, em concreto, quem concede ou
transfere o poder para os reis é a comunidade”, continua. Esta transferência é
feita “sob condição de respeito pela justiça e pelo direito fundamental de
conservação da vida”. E, tendo por base esta premissa, “a comunidade ou os
indivíduos directamente ameaçados podem resistir e destituir os governantes”.
Ou seja, no século XVII o direito de resistência era entendido como uma reacção
aos tiranos, categoria onde entrava também quem não governasse para o bem
comum.
=Público=
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