O próprio ritmo da nossa vida assenta na
honorabilidade da revolta.
Repugnando-nos admitir a identidade
universal, afirmamos e individuação, a heterogeneidade, como fenómeno
primordial. Ora, revoltarmo-nos é postular essa heterogeneidade, concebê-la de
algum modo como anterior ao advento dos seres e dos objectos.
Se oponho a unidade, só ela verídica, à
multiplicidade, necessariamente enganadora, se, noutros termos, assimilo o
outro a um fantasma, a minha revolta torna-se vazia de sentido, essa revolta
que, para existir, tem de partir da irredutibilidade dos indivíduos, da sua
condição de nómadas, de essências circunscritas.
Todo o acto institui e reabilita a
pluralidade, e, conferindo à pessoa realidade e autonomia, reconhece
implicitamente a degradação, a fragmentação do absoluto.
E é dele, do acto, e do culto que lhe é
dedicado, que procede a tensão do nosso espírito, bem como essa necessidade de
explodirmos e nos destruirmos no cerne da duração.
A filosofia moderna, ao instaurar a
superstição do Eu, tornou-o a mola real dos nossos dramas e o eixo das nossas
inquietações.
Chorar o repouso da indistinção, o sonho neutro
da existência sem qualidades, de nada serve; quisemo-nos sujeitos, e todo o
sujeito é ruptura com a quietude da Unidade.
Quem se disponha a atenuar a nossa solidão ou
as nossas dilacerações age contra os nossos interesses e contra a nossa
vocação.
Medimos o valor do indivíduo pela soma dos
seus desacordos com as coisas, pela sua incapacidade de ser indiferente, pela
sua recusa de tender para o objecto. Daí a depreciação da ideia de Bem, daí a
voga do Diabo.
Enquanto vivíamos no meio de terrores
elegantes, acomodavamo-nos muito bem a Deus. Quando outros terrores, mais
sórdidos porque mais profundos, nos invadiram passamos a precisar de outro
sistema de referências, de outro patrono.
O Diabo era a figura ideal. Tudo nele
concorda com a natureza dos acontecimentos de que é agente, princípio regulador:
os seus atributos coincidem com os do tempo.
Enderecemos-lhe portanto as nossas preces,
porque, longe de ser um produto da nossa subjectividade, uma criação da nossa
necessidade de blasfémia ou de solidão, ele é o senhor das nossas interrogações
e dos nossos pânicos, o instigador dos nossos desvarios.
Aos seus protestos, às suas violências, não
falta o equívoco: este “muito triste” é um rebelde que duvida. Se fosse
simples, todo de uma só peça, não nos tocaria; mas os seus paradoxos, as suas
contradições são os nossos: acumula as nossas impossibilidades, serve de modelo
às nossas revoltas contra nós próprios, ao nosso ódio por nós próprios.
A fórmula do Inferno? É nesta forma de
revolta e de ódio que devemos procurá-la, no suplício do orgulho destronado,
nessa sensação de sermos uma terrível quantidade negligenciável, nos tormentos
do “eu” pelo qual começa o nosso fim…
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