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domingo, 28 de abril de 2013

«A HONORABILIDADE DA REVOLTA»

O próprio ritmo da nossa vida assenta na honorabilidade da revolta.
Repugnando-nos admitir a identidade universal, afirmamos e individuação, a heterogeneidade, como fenómeno primordial. Ora, revoltarmo-nos é postular essa heterogeneidade, concebê-la de algum modo como anterior ao advento dos seres e dos objectos.

Se oponho a unidade, só ela verídica, à multiplicidade, necessariamente enganadora, se, noutros termos, assimilo o outro a um fantasma, a minha revolta torna-se vazia de sentido, essa revolta que, para existir, tem de partir da irredutibilidade dos indivíduos, da sua condição de nómadas, de essências circunscritas.

Todo o acto institui e reabilita a pluralidade, e, conferindo à pessoa realidade e autonomia, reconhece implicitamente a degradação, a fragmentação do absoluto.

E é dele, do acto, e do culto que lhe é dedicado, que procede a tensão do nosso espírito, bem como essa necessidade de explodirmos e nos destruirmos no cerne da duração.

A filosofia moderna, ao instaurar a superstição do Eu, tornou-o a mola real dos nossos dramas e o eixo das nossas inquietações.

Chorar o repouso da indistinção, o sonho neutro da existência sem qualidades, de nada serve; quisemo-nos sujeitos, e todo o sujeito é ruptura com a quietude da Unidade.

Quem se disponha a atenuar a nossa solidão ou as nossas dilacerações age contra os nossos interesses e contra a nossa vocação.

Medimos o valor do indivíduo pela soma dos seus desacordos com as coisas, pela sua incapacidade de ser indiferente, pela sua recusa de tender para o objecto. Daí a depreciação da ideia de Bem, daí a voga do Diabo.

Enquanto vivíamos no meio de terrores elegantes, acomodavamo-nos muito bem a Deus. Quando outros terrores, mais sórdidos porque mais profundos, nos invadiram passamos a precisar de outro sistema de referências, de outro patrono.

O Diabo era a figura ideal. Tudo nele concorda com a natureza dos acontecimentos de que é agente, princípio regulador: os seus atributos coincidem com os do tempo.

Enderecemos-lhe portanto as nossas preces, porque, longe de ser um produto da nossa subjectividade, uma criação da nossa necessidade de blasfémia ou de solidão, ele é o senhor das nossas interrogações e dos nossos pânicos, o instigador dos nossos desvarios.

Aos seus protestos, às suas violências, não falta o equívoco: este “muito triste” é um rebelde que duvida. Se fosse simples, todo de uma só peça, não nos tocaria; mas os seus paradoxos, as suas contradições são os nossos: acumula as nossas impossibilidades, serve de modelo às nossas revoltas contra nós próprios, ao nosso ódio por nós próprios.

A fórmula do Inferno? É nesta forma de revolta e de ódio que devemos procurá-la, no suplício do orgulho destronado, nessa sensação de sermos uma terrível quantidade negligenciável, nos tormentos do “eu” pelo qual começa o nosso fim…

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