Entregues a formas degradadas de sabedoria,
doentes da duração, em luta com essa enfermidade que nos repugna, em luta com o
tempo, somos constituídos de elementos que concorrem todos eles para fazer de nós rebeldes divididos entre um apelo místico que não tem qualquer ligação à
história e um sonho sanguinário que é o símbolo e o halo desse apelo.
Se tivessemos um mundo nosso, pouco
importaria que fosse o da piedade ou o do sarcasmo!
Nunca o teremos, porque a nossa posição na
existência se situa na encruzilhada entre as nossas súplicas e os nossos
escárnios, zona de impureza onde os suspiros e as provocações se misturam.
Quem é demasiado lúcido para adorar será
também demasiado lúcido para demolir, ou demolirá apenas as suas revoltas; pois
de que serve revoltarmo-nos para redescobrirmos depois o universo intacto?
Insurgimo-nos contra a justiça e a injustiça,
contra a paz e a guerra, contra os nossos semelhantes e contra os “deuses”.
Depois, acabamos por pensar que o mais senil
de entre os homens talvez seja mais sábio do que Prometeu. No entanto, não
conseguimos abafar dentro de nós um grito insurreccinal, e continuamos a bradar
acerca de tudo e nada: automatismo miserável que explica porque somos todos
Lucíferes de estatísctica.
Contaminados pela superstição do acto, cremos
que as nossas ideias devem resultar. Que haverá de mais contrário à
contemplação passiva do mundo? Mas é o nosso destino: sermos incuráveis que
protestam, panfletários prostrados.
Os nossos conhecimentos, bem como as nossas
experiências, deveriam ter por efeito paralisar-nos e tornar-nos indulgentes
para com a própria tirania, a partir do momento em que esta representa uma
constante.
Somos clarividentes o bastante para nos
sentirmos tentados a depor as armas; no entanto, o reflexo da rebelião triunfa
das nossas dúvidas; e embora possamos agir como estóicos consumados, o
anarquista permanece à espreita em nós, opondo-se às nossas resignações.
“Nunca aceitaremos a História”, tal me parece
ser a divisa da nossa impotência para sermos verdadeiros sábios ou verdadeiros
loucos.
Seremos comediantes da sabedoria e da
loucura? Façamos o que fizermos, estamos condenados, no que se refere aos
nossos actos, a uma insinceridade profunda.
É perfeitamente claro que um crente se
identifica, até certo ponto, com o que faz e com o que crê; nele não existe
distância de monta entre a lucidez, por um lado, e as suas acções e
pensamentos, por outro.
Esta distância cresce desmesuradamente no
falso crente, naquele que exibe convicções sem a elas aderir. O objecto da sua
fé é um sucedâneo.
É preciso dizê-lo sem rodeios: a minha
revolta é uma fé que subscrevo, embora me custe acreditar na sua realização,
apesar de todos os meus esforços para que se concretize.
Nunca acreditaremos o bastante nas palavras de
Kirilov sbre Stavroguine: «Quando acredita, não acredita que acredita; quando
não acredita, não acredita que não acredita.»
Será que o presidente da República acredita
no que disse solenemente na Casa da Democracia no dia 25 de Abril, por trás de
tantos cravos vermelhos?
Sem comentários:
Enviar um comentário