Depois dele vêm aqueles que disputam entre si a pitança
dos restos e dos cães vadios, dos gatos perdidos e dos vermes.
Definem-se pelo domínio que as necessidades elementares e
a urgência em satisfazê-las exerce sobre eles, e sem as quais a vida não é
impossível.
Vadios, vagabundos, dizia-se outrora, antes que a
conjuração do termo pelos imbecis – como se ela chegasse para fazer desaparecer
o que nomeia – permitisse o triunfo da perífrase sem-domicílio-fixo, mais
prosaicamente SDF, como uma sigla mágica que dispensaria o significante de todo
o tipo de relação com qualquer significado e que só pela sua semântica iludiria
a realidade.
Mas, ele disse: «Se os sem abrigo aguentam, porque não
podemos nós – ele disse «NÓS», quando nada em dinheiro e poder no mundo
capitalista da banca”. E é a segunda vez que ele insulta os cidadãos em geral,
os mais pobres e carentes em especial.
Pretendo manter este termo – “sem-abrigo” – “vagabundo,
vadio” – também por razões etimológicas, pois este é assim chamado porque, em
primeiro lugar, coxeia e é desajeitado, e ser desajeitado é também ser
defeituoso, pecar contra uma dada regra, instalar-se do lado ímpar e
desgracioso – já voltarei a falar sobre este aspecto – é mostrar a sua
fraqueza, inadequação, inacabamento e desequilíbrio.
Hefaístos e Jacob ,amquejavam por terem combatido Deus e
os “sem-abrigo” porque são os vencidos de uma luta mortal com o Capital, as
forças sociais e políticas conjugadas.
Eles coxeiam depois de terem sido esmagados pelos “deuses”
do dinheiro e do capitalismo desenfreado.
“Sem-abrigo” e vagabundo, assim surge aos olhos dos que
se recusaram a combater tais deuses para a eles se entregarem de corpo e alma,
deixando de fora qualquer luta e não a travando.
Sujos, grosseiros, endossando farrapos, embrulhados como
pacotes, protegidos por uma capa que é também uma colagem de desperdícios, os “sem-abrigo”
ampliam frequentemente a sua claudicação graças ao uso do álcool como único
viático, único soporífero permitido para atravessar as agruras do frio, da
fome, da noite, da solidão, do abandono e do isolamento.
O mau vinho fornece, ao corpo, com que se sustentar e se
aquecer, quando, em redor, tudo parece hostil.
Este coxear, ao qual se junta o andar de banda dqueles
que estão embriagados, mostra, porfiadamente, a ofensa feita à verticalidade
que define o homo sapiens e o insensível regresso ao que produz a regressão da
espécie: verticalidade, bipedia; depois, é a curvatura, o equilíbrio precário,
o desequilíbrio; por fim, uma mistura de quadrupedia, até mesmo de reptação ou
de prostração que indica até que trajecto se condenou o danado: ao da reescrita, no seu corpo e na sua pessoa dos
estados que antecedem a hominização – como se fosse a perversão da ideia que a
ontogenése recapitula a filogénese.
No danado extremo, esta regressão da humanidade faz-lhe
percorrer, em marcha atrás, todas as etapas de um progresso ancestral, que se
torna uma regressão actual; estendido no chão, confundindo-se com o passeio,
perdido no meio de cartões empilhados, atingido pelo vinho, quando não está
arrasado pelo álcool, é visível que o “sem-abrigo” não se limita a alguém que é
definido pela sua privação de domicílio fixo: ele é também aquele cujo único
domicílio fixo é o corpo vivido como uma maldição, uma ocasião perpétua de
recriminações, corpo que é preciso alimentar, refrescar, vestir, proteger,
aquecer, corpo irmão – nesse âmbito – ao dos deportados e dos prisioneiros.
Corpo que seria preciso poupar, não o expondo aos perigos
das carências alimentares, térmicas ou de sono, corpo que tanto deveria evitar
dirigir a violência contra ele próprio, como de desviá-la e canalizá-la sobre
os outros.
Por outro lado, será que pensamos no que reperesentam as
necessidades de defecar, quando nenhum local fechado e privado permite esconder
a animalidade?
O actual líder do BPI deveria responder por ofensa aos
que foram marginalizados pela sociedade capitalista de que faz parte e que
consegue minar continuamente, injectando lenta ou mesmo rapidamente, a
infelicidade alheia, permitindo-se o gozo de todos os que sofrem as
inclemências da vida, devido à sua ambição, sempre crescente, de poder viver
sem que nada lhe falte.
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