Consumação mais do que abismo, a morte dá-nos
vertigens apenas para melhor nos elevar acima de nós próprios, como faz o amor,
com o qual ela se aparenta sob diversos aspectos: uma e outro, forçando o
quadro da nossa existência até o fazer explodir, desintegram-nos e
fortificam-nos, arruínam-nos pelos atalhos da plenitude.
Os seus elementos são tão irredutíveis como
inseparáveis, compõem um equívoco fundamental. Se, até certo ponto, o amor nos
perde, através de que sensações de dilatação e orgulho o não faz!
E se a morte nos perde por completo, com que
frémitos nos arrasta! Sensações e frémitos através dos quais transcendem o
homem que há em nós e os acidentes do “eu”.
Como uma e outro apenas nos definem na medida
em que neles projectamos os nossos apetites e os nossos impulsos, em que
concorremos com todas as nossas forças para a sua natureza equívoca, são
necessariamente incaptáveis se os olharmos como realidades exteriores que se
oferecem ao jogo do intelecto.
Mergulhamos no amor como na morte, não
meditamos sobre eles: saboreámo-los, somos seus cúmplices, não os pesamos.
Por isso, toda a experiência que não se
converte em volúpia é uma experiência falhada.
Se tivessemos que nos limitar às nossas
sensações tais como são, parecer-nos-iam intoleráveis, porque demasiado
diferentes, demasiado dissemelhantes da nossa essência.
A morte
não seria para os homens a sua grande experiência perdia se a soubessem
assimilar à sua natureza ou metamorfoseá-la em volúpia.
Mas a morte permanece nos homens à margem dos
homens; continua a ser o que é, diferente daquilo que eles são.
E é ainda uma prova da sua dupla realidade,
do seu carácter equívoco, do paradoxo inerente à maneira como a sentimos, o
facto de ela se nos apresentar ao mesmo tempo como situação-limite e como dado
directo.
Corremos para ela e, entretanto, é já nela
que estamos. Mesmo quando a incorporamos na nossa vida, não podemos impedir-nos
de a colocarmos no futuro.
Por uma inconsequência inevitável,
interpretá-mo-la como o futuro que destrói o presente, o nosso presente. Se o
medo nos ajuda a definir o nosso sentimento do espaço, a morte abre-nos ao
verdadeiro sentido da nossa dimensão temporal, uma vez que, sem ela, ser no
tempo nada significaria para nós ou, quando muito, significaria o mesmo que ser
na eternidade.
É assim que a imagem tradicional da morte,
apesar de todos os nossos esforços para lhe escaparmos, persiste em nos
assombrar, imagem de que os doentes são os principais responsáveis.
Nesta matéria, estamos sempre dispostos a
reconhecer-lhes alguma competência: um preconceito favorável atribui-lhes
oficiosamente o prestígio da “profundidade”, embora a maior parte dos doentes
dê provas de uma desconcertante futilidade.
Quem não conheceu, entre os que lhe são
próximos, incuráveis de opereta?
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