Gosto das
geografias e das cartografias de Nietzsche porque elas fornecem oportunidades
para encontrarmos, no nosso percurso, uma quantidade incrível de personagens
conceptuais, de figuras singulares, de sujeitos assombrosos, mas todos providos
de uma vitalidade incrível, se uma seiva soberba.
Para
celebrar a morte de Deus e dar o banquete que convém para uma tal ocasião, o
filósofo convida uma multiplicidade de seres: um rei de direita e um de esquerda,
uma vítima lasciva, uma tarântula ondulante, um velho feiticeiro, um papa –
sério como se devia esperar – um leão risonho, uma sanguessuga, um mendigo
voluntário acompanhado por um indivíduo de espírito consciencioso, um adivinho
triste e o mais feio dos homens, uma arca repleta de macacos e de burros,
águias e serpentes, mas, também, guerreiros e criancinhas de espelho,
ilusionistas seguidos por raparigas do deserto, um caminhante nocturno, um
viajante, um convalescente, sábios ilustres, e ainda outros animais, entre os
quais um camelo, um dragão e, depois, pálidos criminosos.
Esquecera-se,
mas não podia fazer melhor devido à cronologia, dos três filósofos obsecados,
um por uma história de visão, outro pelas máquinas de desejo e, o último, pelos
homens infames.
Matéria
para ligar, entre eles, três pontos sombrios e dioníacos, num triângulo negro
onde (já o reconheceram), cada vértice designa Bataille, Deleuze e Foucault,
isto é, três das mais sublimes ocorrências do nietzscheanismo francês de
esquerda do vigésimo século.
Quanto a
mim, creio que, ao fornecerem as suas diferentes, mas convergentes, leituras de
“Assim Falava Zaratustra” e das suas teses cardeais, os três ofereceram os
meios para uma grande política, cujo epicentro coincide com a formulação desse
novo indivíduo que assombra a arquitectura e as finalidades de qualquer
política digna desse nome.
Suponhamos,
nos ângulos agudos desse triângulo negro, uma reflexão sobre a soberania, as
suas condições, a sua parte maldita, a economia generalizada; outra sobre as
máquinas de desejo, as relações entre o capitalismo e a esquizofrenia, os
planaltos políticos e os rizomas ideológicos, as particularidades moleculares e
o molar universal; suponhamos, finalmente, uma análise fina e rigorosa dos
diagramas estratégicos, das técnicas disciplinares ou dos regimes de sujeição –
o todo não negligenciando o conjunto proliferante de linhas de força e de fuga
que surgem em todo o lado, que penetram e sobressaem do conjunto das obras e
que as atravessam, de parte a parte, como flechas no corpo de S. Sebastião.
Penso que
foram desprezadas, esquecidas e negligenciadas as capacidades oferecidas pelo
nietzscheanismo francês para fornecer um pensamento alternativo ao mundo
triunfante do capitalismo liberal, se não, no que diz respeito a Bataille, após
o fim da Segunda Guerra Mundial, pelo menos desde Maio de 68, quanto a Deleuze
e Foucalt.
Ao
banquete dos convidados solicitados por Nietzsche para se regozijar do fim da
aranha na cruz e do seu princípio, é preciso juntar, hoje, esse caminhante das
greves, esse sonhador das areias que, não sei em que praia do seu entendimento,
deparou um dia com um desenho que se assemelhava a uma face que ele viu, muito
depressa, a qual ainda representava a do homem, antes que o fluxo e o refluxo
das marés a levasse embora, apagando-a.
M. O.
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