Número total de visualizações de páginas

segunda-feira, 25 de março de 2013

«PARA LÁ DA FACE DE AREIA»


Gosto das geografias e das cartografias de Nietzsche porque elas fornecem oportunidades para encontrarmos, no nosso percurso, uma quantidade incrível de personagens conceptuais, de figuras singulares, de sujeitos assombrosos, mas todos providos de uma vitalidade incrível, se uma seiva soberba.

Para celebrar a morte de Deus e dar o banquete que convém para uma tal ocasião, o filósofo convida uma multiplicidade de seres: um rei de direita e um de esquerda, uma vítima lasciva, uma tarântula ondulante, um velho feiticeiro, um papa – sério como se devia esperar – um leão risonho, uma sanguessuga, um mendigo voluntário acompanhado por um indivíduo de espírito consciencioso, um adivinho triste e o mais feio dos homens, uma arca repleta de macacos e de burros, águias e serpentes, mas, também, guerreiros e criancinhas de espelho, ilusionistas seguidos por raparigas do deserto, um caminhante nocturno, um viajante, um convalescente, sábios ilustres, e ainda outros animais, entre os quais um camelo, um dragão e, depois, pálidos criminosos.

Esquecera-se, mas não podia fazer melhor devido à cronologia, dos três filósofos obsecados, um por uma história de visão, outro pelas máquinas de desejo e, o último, pelos homens infames.

Matéria para ligar, entre eles, três pontos sombrios e dioníacos, num triângulo negro onde (já o reconheceram), cada vértice designa Bataille, Deleuze e Foucault, isto é, três das mais sublimes ocorrências do nietzscheanismo francês de esquerda do vigésimo século.

Quanto a mim, creio que, ao fornecerem as suas diferentes, mas convergentes, leituras de “Assim Falava Zaratustra” e das suas teses cardeais, os três ofereceram os meios para uma grande política, cujo epicentro coincide com a formulação desse novo indivíduo que assombra a arquitectura e as finalidades de qualquer política digna desse nome.

Suponhamos, nos ângulos agudos desse triângulo negro, uma reflexão sobre a soberania, as suas condições, a sua parte maldita, a economia generalizada; outra sobre as máquinas de desejo, as relações entre o capitalismo e a esquizofrenia, os planaltos políticos e os rizomas ideológicos, as particularidades moleculares e o molar universal; suponhamos, finalmente, uma análise fina e rigorosa dos diagramas estratégicos, das técnicas disciplinares ou dos regimes de sujeição – o todo não negligenciando o conjunto proliferante de linhas de força e de fuga que surgem em todo o lado, que penetram e sobressaem do conjunto das obras e que as atravessam, de parte a parte, como flechas no corpo de S. Sebastião.

Penso que foram desprezadas, esquecidas e negligenciadas as capacidades oferecidas pelo nietzscheanismo francês para fornecer um pensamento alternativo ao mundo triunfante do capitalismo liberal, se não, no que diz respeito a Bataille, após o fim da Segunda Guerra Mundial, pelo menos desde Maio de 68, quanto a Deleuze e Foucalt.

Ao banquete dos convidados solicitados por Nietzsche para se regozijar do fim da aranha na cruz e do seu princípio, é preciso juntar, hoje, esse caminhante das greves, esse sonhador das areias que, não sei em que praia do seu entendimento, deparou um dia com um desenho que se assemelhava a uma face que ele viu, muito depressa, a qual ainda representava a do homem, antes que o fluxo e o refluxo das marés a levasse embora, apagando-a.

M. O.

Sem comentários:

Enviar um comentário