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quarta-feira, 27 de março de 2013

«A RODA DOS ENJEITADOS»


Inserida na história do quotidiano e dos valores ético-mentais da sociedade portuguesa, a roda dos enjeitados, conjugação ambivalente de representações simbólicas e operativas, assumiu por excelência o papel derimidor das venalidades dos diferentes estratos populacionais ao proceder à recolha e educação dos recém-nascidos abandonados.

Em sentido estrito, as rodas eram cilindros giratórios existentes nas portarias dos conventos, colocadas verticalmente e abertos de um dos lados, permitindo a livre circulação de objectos e obviando ao contacto directo da irmã rodeira com o exterior.

Elos de ligação entre dois mundos distintos em que, porém, o sagrado se impõe ao profano, as rodas das comunidades conventuais acabariam por veicular, enquanto entidade mediadora, a integração social de crianças na sua maior parte ilegítimas e de filiação desconhecida.

O persistente recurso de que foram objecto, consagração na mentalidade colectiva da sua função assistencial, seria o elemento propulsor da sua oficialização em fins do século XVIII, ao determinar Pina Manique, intendente-Geral do Reino, por circular de 24 de Maio de 1783, a institucionalização das rodas de enjeitados, como medida morigeradora do elevado índice anual de infanticídios.

Em consequência, as rodas estenderam-se a todo o país, aliando à garantia de protecção dos expostos, igualmente projectada na sua iniciação profissional, através da Casa Pia, criada por Manique, a certeza de anonimato e de impunidade no acto do seu abandono, dados os particularismo deste processo.

Ao longo, porém, da sua trajectória histórica, o abandono de crianças processou-se igualmente nos adros das igrejas, hospitais e misericórdias, de que se toma como exemplo a de Lisboa, onde os enjeitados eram expostos na Misericórdia, no Hospital Real de Todos os santos, no Hospital dos Palmeiros, na Ermida da Ascensão e na dos Fiéis de Deus.

A expansão ultramarina, porém, e sobretudo no seu período de euforia da primeira metade do século XVI, ao desencadear um processo de alterações morfológicas nas estrutura sociojurídica, tornaria correntes os mimetismos sociais, as aspirações nobiliárquicas, a lassidão de costumes, os adultérios e os filhos ilegítimos, quadros tão mordazmente desenhados por Gil Vicente nos seus autos, Filhos de burguesas, de religiosas ou de nobres, o seu destino indistintamente se cruzou com as rodas de enjeitados, como que  enjeitando a vida no seu individualismo específico, para assumir, decorrente de um generalizado movimento de protecção, a expensas quer dos concelhos, por determinação régia, quer das próprias ordens religiosas, um carácter de estigmatizada massificação.

Nos dias de hoje não existem as rodas, mas existem cada vez mais enjeitados, sejam crianças ou velhos, com jovens pelo meio, para e mais não seja, compor bem o actual quadro.

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