Inserida na história do quotidiano e dos
valores ético-mentais da sociedade portuguesa, a roda dos enjeitados,
conjugação ambivalente de representações simbólicas e operativas, assumiu por
excelência o papel derimidor das venalidades dos diferentes estratos
populacionais ao proceder à recolha e educação dos recém-nascidos abandonados.
Em sentido estrito, as rodas eram cilindros
giratórios existentes nas portarias dos conventos, colocadas verticalmente e
abertos de um dos lados, permitindo a livre circulação de objectos e obviando
ao contacto directo da irmã rodeira com o exterior.
Elos de ligação entre dois mundos distintos
em que, porém, o sagrado se impõe ao profano, as rodas das comunidades
conventuais acabariam por veicular, enquanto entidade mediadora, a integração
social de crianças na sua maior parte ilegítimas e de filiação desconhecida.
O persistente recurso de que foram objecto,
consagração na mentalidade colectiva da sua função assistencial, seria o
elemento propulsor da sua oficialização em fins do século XVIII, ao determinar
Pina Manique, intendente-Geral do Reino, por circular de 24 de Maio de 1783, a
institucionalização das rodas de enjeitados, como medida morigeradora do
elevado índice anual de infanticídios.
Em consequência, as rodas estenderam-se a
todo o país, aliando à garantia de protecção dos expostos, igualmente
projectada na sua iniciação profissional, através da Casa Pia, criada por
Manique, a certeza de anonimato e de impunidade no acto do seu abandono, dados
os particularismo deste processo.
Ao longo, porém, da sua trajectória
histórica, o abandono de crianças processou-se igualmente nos adros das
igrejas, hospitais e misericórdias, de que se toma como exemplo a de Lisboa,
onde os enjeitados eram expostos na Misericórdia, no Hospital Real de Todos os
santos, no Hospital dos Palmeiros, na Ermida da Ascensão e na dos Fiéis de
Deus.
A expansão ultramarina, porém, e sobretudo no
seu período de euforia da primeira metade do século XVI, ao desencadear um
processo de alterações morfológicas nas estrutura sociojurídica, tornaria
correntes os mimetismos sociais, as aspirações nobiliárquicas, a lassidão de
costumes, os adultérios e os filhos ilegítimos, quadros tão mordazmente
desenhados por Gil Vicente nos seus autos, Filhos de burguesas, de religiosas
ou de nobres, o seu destino indistintamente se cruzou com as rodas de
enjeitados, como que enjeitando a vida
no seu individualismo específico, para assumir, decorrente de um generalizado
movimento de protecção, a expensas quer dos concelhos, por determinação régia,
quer das próprias ordens religiosas, um carácter de estigmatizada massificação.
Nos dias de hoje não existem as rodas, mas
existem cada vez mais enjeitados, sejam crianças ou velhos, com jovens pelo
meio, para e mais não seja, compor bem o actual quadro.
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