Desde há alguns anos que, em vez de deixarmos
que o tempo nos triturasse lentamente, preferimos reforçá-lo, acrescentar aos
seus os nossos instantes. Este tempo recente, enxertado no antigo, este tempo
elaborado e projectado, revelaria em breve a sua virulência: objectivando-se,
tornar-se-ia história, monstro por nós lançado contra nós, fatalidade a que é
impossível escapar, ainda que recorrendo às formas de passividade, às receitas
da “sabedoria”.
Sim, foi decidido pelas altas instâncias
eleitas pelo povo ou elevadas por si mesmas, tentar uma cura de ineficácia;
meditar sobre os ensinamentos dos mestres da indiferença, da soberania da
ausência; seguir, imitando o seu exemplo, o percurso da consciência quando esta
deixa de se medir com o mundo e passa a desposar os contornos de todas as
coisas, como água, elemento que lhes é
caro – por muito que nos esforcemos, nunca o conseguiremos.
Os mestres condenam, ao mesmo tempo, nossa curiosidade e a nossa sede de dores; e
nisso se distinguem dos místicos, e especialmente dos da Idade Média, peritos
em recomendar-nos as virtudes do burel áspero, dos cilícios, da insónia, da
inanição e dos gemidos.
A vida faz-se à custa tanto do espírito como
do corpo. Mestres na arte de pensar contra si próprios, Nietzsche, Baudelaire e
Dostoiewski ensinaram-nos a apostar nos nossos perigos, alargar a esfera dos nossos males, a ganhar
existência através da divisão interna do nosso ser.
E quilo que aos olhos do grande chinês – Tao - era símbolo de decadência, exercício de
imperfeição, constitui para nós a única modalidade porque nos possuímos,
porque entramos em contacto connosco próprios.
A aprendizagem da passividade – não vejo nada
que seja mais contrário aos nossos hábitos,
época actual teve início com uma espécie de histeria: D. Quixote
discursando sobre a sua Dulcineia de Toboso lusitano.
Existem formas de sabedoria e de libertação
que não podemos nem apreender por dentro nem transformar na nossa substância
quotidiana, nem mesmo encerrar numa teoria.
A libertação, se realmente a quisermos,
deverá proceder de nós: não devemos procurá-la em qualquer lugar, num sistema
já feito ou numa qualquer doutrina ocidental ou mesmo oriental, sendo, todavia,
o que frequentemente acontece com muitos espíritos ávidos, como costuma
dizer-se, de absoluto. Mas a sua sabedoria é uma contrafacção, a sua libertação
um logro.
Após tanta fraude e impostura, é
reconfortante contemplar um mendigo, porque ele, ao menos, não mente os outros
nem a si próprio: a sua doutrina, se é que a tem, encarna-a: não gosta do
trabalho e demonstra-o: como nada deseja possuir, cultiva o seu despojamento,
condição da sua liberdade.
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