A nova vida de um ex-ministro das Finanças que adora carros
alemães e nunca se esquece de uma factura nos bolsos dos fatos.
Desde o
início da semana que Vítor Gaspar, rompeu com hábitos que sedimentou ao longo
de dois anos do Governo: deixou de sair de casa pelas 7 horas da manhã com a
habitual cara carrancuda, deixou de ser visto a passear a imponente cadela da
família e, presume-se, deixou de ser atormentado pelos seus piores fantasmas
desde que, em Junho de 2011, chegou ao Governo - Paulo Portas e o Tribunal
Constitucional (TC).
A ordem não
é arbitrária: quem sabe, diz que por trás da ‘desculpa' da recusa do TC em
assinar por baixo a política recessiva do Executivo está um crescente e
irrevogável desentendimento com o líder do CDS/PP (por muito que a substância
daquela palavra ande nesta altura pelas ruas da amargura). Aparentemente, as
várias tentativas do antigo ministro das Finanças em deixar o Executivo de
Pedro Passos Coelho coincidem ao milímetro com os picos de desentendimento
entre os dois partidos da coligação - ou da coligação que existia até ao início
desta semana e que entretanto mudou de feição.
Seja como for, Gaspar ficará para a história como o homem que premiu o botão vermelho que fez implodir a coligação - logo ele, de quem todos dizem que é o ser mais afável do mundo. Ou quase. Quem com ele lidou no Ministério não tem dúvidas em afirmar que Vítor Gaspar "é simples no trato" - e que essa simplicidade é tão genuína que chega ao ponto de recusar convites das tripulações dos aviões em que constantemente anda metido para trocar o lugar de turística por um de executiva (no que parece que não é secundado por vários dos seus colegas).
Gostos e gastos de ‘Salazarinho'
Única ‘brecha' neste ascetismo material com que aparentemente vive bem: gosta de automóveis da marca Mercedes - um deles, adquirido no centro da Europa nos tempos em que foi quadro do Banco Central Europeu, esteve estes dois anos a ganhar pó na garagem, em detrimento do BMW série 5 (antiga) que o Ministério lhe facultou. Quanto ao resto, nada de gastos, coisa que, no Governo, fez ascender à condição de obrigação da parte de todo o Executivo, o que lhe mereceu a alcunha pouco simpática de ´Salazarinho', aliás um beirão como ele.
Terá sido
este seu dom da afabilidade que lhe permitiu resolver um problema razoavelmente
grave que lhe sucedeu há tempos no Ministério. Por artes inexplicáveis, os
técnicos das Finanças e os do Banco de Portugal dão-se tão bem como Paulo
Portas e Marcelo Rebelo de Sousa. Ou seja: cumprimentam-se, não se tentam espancar
quando estão fechados na mesma sala (com alguém a tomar conta), mas
detestam-se.
Ora, quando
a ‘troika' desaguou no país e Gaspar passou a ser o seu ‘frontispício', foi
necessário recolher uma bateria de documentos, fazer contas, puxar de
conhecimentos de ‘excel' e dirimir estatísticas, funções a que desavisadamente
foram chamados os técnicos dos dois organismos. Em pouco tempo, estava o
contingente dividido em dois grupos que mediam forças, conhecimentos e
decibéis, a tal ponto que os do Banco de Portugal foram ameaçados por duas
vezes de serem expulsos de tão patriótico desiderato. O que, aparentemente,
teria sucedido - apesar da pressa com que o país entretanto se ia aproximando
do abismo - se não se tivesse dado o caso, incomum, de o próprio ministro ter
chamado a si a resolução da inóspita situação.
Com aquele
seu discurso desconcertante e habilidoso (que, convenhamos, se tenta aqui
descaradamente imitar nos dois últimos parágrafos, aliás sem qualquer sucesso)
lá voltaram as hostes desavindas a formar um agregado, que até hoje ou até à
segunda-feira passada se mantinha no activo.
Tenista e homem de bairro
Fora do Ministério, as opiniões mantêm-se: "é a pessoa mais elegante daqui, é super-elegante", descreve o residente de um prédio nas Olaias, bairro de Lisboa onde o ex-ministro vive há 25 anos. O prédio, da autoria do arquitecto Tomás Taveira, é tão sóbrio quanto o bairro. Mas a zona não serve para fazer aquilo a que se chama ‘vida de bairro': "não há mercearias nem pequenas lojas por onde Vítor Gaspar e a mulher" - economista no Banco de Portugal que também tem um Mercedes - "se passeiem e contactem com quem aqui mora", afirma o vizinho, às tantas interessado em aprofundar contactos com o de repente popular companheiro de condomínio.
Não andará pelo bairro, mas frequenta com grande assiduidade o Clube das Olaias, onde joga ténis e, ao que parece, com alguma qualidade, com colegas de trabalho. Por ali é visto diversas vezes com a mulher e com uma ou mais das suas três filhas - se bem que a mais velha já terá deixado a casa de família para seguir os conselhos do ex-patrão do pai, para quem a juventude deve mas é pôr-se a andar daqui para fora. E, por falar-se em família, será de referir que, como relata outra fonte, mulher e filhas insistiam cada vez mais com o ministro das Finanças para que abandonasse um lugar que já se lhe afigurava odioso.
Odioso
parece ser a palavra certa, isto a acreditar numa história segundo a qual Vítor
Gaspar terá comentado com um amigo empregado na Goldman Sachs que estava cansado
de ser o homem mais odiado do país e de querer regressar ao lugar onde sempre
foi feliz - a saber: a vida académica e de técnico nos bancos reguladores.
Sem se saber
se será por ali que passa o futuro do ex-ministro - até porque entretanto
deixou de ser visto nas redondezas do prédio onde continua a habitar -, de
Vítor Gaspar deve esperar-se, dizem, um retiro sabático da vida pública
nacional, um pouco à semelhança do que fez o seu antecessor, Teixeira dos
Santos, que, coincidência das coincidências, está aparentemente a regressar do
seu próprio retiro por estes dias. Do que Gaspar tinha a dizer, para que não
restassem dúvidas, disse-o na carta de demissão que quis tornar pública - e que
de alguma forma o país leu sob a dupla vertente de libelo de acusação e de
testamento político.
Televisão?Não, obrigado
Dele não esperem, dizem ainda, que venha a engrossar o cada vez mais extenso rol de ex-ministros que, uma vez findas as funções de soberania, saltitem de estação em estação televisiva a explicar como, porquê e de que forma deve o poder político actuar para salvar o país - coisa que, presume-se, eles próprios fariam se se desse o caso de poderem. Não podem, porque já são mexilhão. É a vida, como diria o outro.
O mais certo
é que Gaspar decida mesmo ir para Bruxelas ou mais propriamente para o Banco
Central Europeu - sabendo-se, aliás, que o seu relógio pessoal já está
sintonizado com o meridiano da capital belga, só se desconhecendo se também já
introduziu no aparelho do Mercedes as coordenadas GPS. Uma mudança que,
provavelmente, também ornará mais difícil que use a lavandaria na Baixa de
Lisboa onde costumava deixar os fatos a limpar (bem como os do pessoal do
ministério das Finanças e ainda os reposteiros dos salões do Terreiro do Paço).
Não há registo de alguma vez ter deixado sequer uma factura esquecida nos
bolsos.
Fica assim
esclarecido (mais ou menos) por que se deu a saída de Vítor Gaspar do Governo.
Não tendo sido possível ouvir as suas explicações ao detalhe, aqui fica uma
frase do antigo ministro das Finanças, suficiente para deitar por terra tão bem
alinhadas ideias: "A minha participação no Governo tem como único
propósito retribuir o enorme investimento que o país colocou na minha educação".
Portanto, das três, uma: ou foi Portas que lhe encheu as medidas; ou o TC que
insistiu na falta de cooperação; ou o ministro Nuno Crato que lhe disse que a
conta já estava saldada.
=Económico=
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