Naquele ano de graça de 1575, com D. Sebastião
e seus oficiais a aparelhar à lufa-lufa a tumba de Alcácer-Quibir, Luiz de
Camões disse mal da sua estrela.
Dissipava-se a fazenda pública a damasquinar
armas, comprar cavalos, contratar mercenários, e tinham deixado de lhe pagar a
magra tença que três anos antes lhe fora dada como galardão, galardão não ao
poeta que escrevera os “Lusíadas”, mas ao soldado que batalhara em África e
Ásia, de onde voltara desfigurado, curtido de febres, tão arruinado do corpo
que lhe era preciso aquele escravo malaio para o amparar.
No seu humilde quartel da Rua de Santa Ana, o
infeliz maldizia dos mangas de alpaca do erário, e ameaçava-os com ir pedir a
el-rei que lhes mandasse dar tantos açoites como de reais lhe deviam, como se o
monarca tivesse cabeça para pensar noutra coisa que não fosse a sua loucura
bélica.
E, verdade é que tinha fome, tinha frio com a
sua velhice prematura e o inverno rigoroso que estava, tão roto e miserável o
seu gibão que não tinha cara de aparecer àqueles dos amigos que por opulência e
benignidade o podiam socorrer.
Valia-lhe o Jau que corria Ceca e Meca e
tendas de livreiros, aqui para entregar uma elegia, ali uma peçazita de teatro,
além de um acróstico e ode festiva, até a sua carta de amor, contra meia dúzia
de tostões, dois ou três cruzados.
Mas nem sempre havia chichibeus românticos, aniversários com música e verso, saraus faustosos. E não raro faltava-lhe a pachorra.
Um vez aparecera-lhe um cavaleiro, Rui Dias
da Câmara, parente do todo poderosos Câmaras, irando e tilintando a espada: “Os
autos penitenciais que ficastes de me traduzir em verso..?”
Falava com arreganho e Camões respondeu-lhe,
embora o sujeito houvesse largado já a espórtula no acto da encomenda: “Não
estão feitos nem sei quando os farei. Escusais de erguer o tom que não me
meteis medo. Já fui forte, moço, namorado como vós. Versos..? A boa hora
vindes. Está ali o meu Jau a pedir-me um vintém para carvão e não o tenho.
Deixai-me em paz.
Às terças-feiras era feira no Rossio e Jau
entalava dois ou três exemplares dos “Lusíadas” debaixo do braço e ia-se para a
arcadas do mosteiro de S. Domingos, para a escadaria do Hospital de Todos os
Santos, onde poisavam os livreiros de cordel e punha branca um ou outro
mercador de livros, belfurinhar o poema.
Encadernado em pergaminho como era de moda,
por doze vinténs, não era dado nem vendido. E todavia não lhe pegavam. Tanto a
poesia como o romance como o latim tinham pouca procura.
O que se vendia como canela eram os “Autos”
de mestre Gil, a “Comédia Eufrosina”, o “Reportório dos Tempos” e a “Cartinha
para ensinar a ler”. Bem berrava ele na voz rouca em português mascavado: Os “Lusíadas”!
qui vereis em verso rimado a história da que depois de morta foi raínha; os
altos feitos dos Doze de Inglaterra e do Magriço; o que se passou na ilha dos
Amores com os marujinhos de D. Vasco da Gama…
Eram vozes ao vento. Também todo o dinheiro
era pouco para sastres e alfagemes. Os fidalgos de posses, cujos avós eram
celebrados no poema, tinham o seu exemplar para o capelão lhes ler e sua oitava
lá de século a século. E o Jau, claudicando, que guardava na perna o estigma da
argola que arrastara de badistão em badistão na imensa Ásia, a enganar o frio
no tabardo esfarrapado, voltava para casa a tinir.
Não tinham aura os “Lusíadas”. Frades e
latinistas “achavam-lhes a linguagem difícil, pretenciosa, pouco ao sabor do
gosto corrente. Na sua sêde de perfeição Luiz de Camões sacrificara a primeira
tiragem, vendendo uns exemplares ao desbarato, rasgando e até queimando outros,
tanto saíra mareada de gralhas do tipógrafo, erros de ortografia, faltas de
métrica e até de gramática, efeito natural da sua inexperiência de revisor e de
uma composição precipitada.
Poucos meses decorridos, no mesmo itálico e
no mesmo formato, apenas com o pelicano do frontispício voltado para a esquerda
à falta de imagem negativa, cedendo a grande custo a seus rogos, o bom António
Gonçalves balançar-se a lançar uma segunda estampa, tomando-lhe parte da
edição à sua conta, ficando ele de lhe pagar em prestações o resto.
Essa saíra, se não perfeita, limpa de jaças
mais graves que aviltavam a obra. Mas, onde buscar compradores?
Os exemplares da primeira edição impingira-os
o Jau a tostão e menos, os da segunda a cruzado em papel seriam ainda um pau
por um olho. Mas quem comprava versos em oitava rima, onde as cantava Juno e
Júpiter Tonante em vez da Virgem Mãe de Deus e de Cristo Nosso Senhor ou de prantear
Maria Parda?
=Aquilino Ribeiro=
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