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segunda-feira, 5 de agosto de 2013

«MISÉRIA E EXPEDIENTES DE LUIZ DE CAMÕES»

Naquele ano de graça de 1575, com D. Sebastião e seus oficiais a aparelhar à lufa-lufa a tumba de Alcácer-Quibir, Luiz de Camões disse mal da sua estrela.

Dissipava-se a fazenda pública a damasquinar armas, comprar cavalos, contratar mercenários, e tinham deixado de lhe pagar a magra tença que três anos antes lhe fora dada como galardão, galardão não ao poeta que escrevera os “Lusíadas”, mas ao soldado que batalhara em África e Ásia, de onde voltara desfigurado, curtido de febres, tão arruinado do corpo que lhe era preciso aquele escravo malaio para o amparar.

No seu humilde quartel da Rua de Santa Ana, o infeliz maldizia dos mangas de alpaca do erário, e ameaçava-os com ir pedir a el-rei que lhes mandasse dar tantos açoites como de reais lhe deviam, como se o monarca tivesse cabeça para pensar noutra coisa que não fosse a sua loucura bélica.

E, verdade é que tinha fome, tinha frio com a sua velhice prematura e o inverno rigoroso que estava, tão roto e miserável o seu gibão que não tinha cara de aparecer àqueles dos amigos que por opulência e benignidade o podiam socorrer.

Valia-lhe o Jau que corria Ceca e Meca e tendas de livreiros, aqui para entregar uma elegia, ali uma peçazita de teatro, além de um acróstico e ode festiva, até a sua carta de amor, contra meia dúzia de tostões, dois ou três cruzados.

Mas nem sempre havia chichibeus românticos, aniversários com música e verso, saraus faustosos. E não raro faltava-lhe a pachorra.

Um vez aparecera-lhe um cavaleiro, Rui Dias da Câmara, parente do todo poderosos Câmaras, irando e tilintando a espada: “Os autos penitenciais que ficastes de me traduzir em verso..?”

Falava com arreganho e Camões respondeu-lhe, embora o sujeito houvesse largado já a espórtula no acto da encomenda: “Não estão feitos nem sei quando os farei. Escusais de erguer o tom que não me meteis medo. Já fui forte, moço, namorado como vós. Versos..? A boa hora vindes. Está ali o meu Jau a pedir-me um vintém para carvão e não o tenho. Deixai-me em paz.

Às terças-feiras era feira no Rossio e Jau entalava dois ou três exemplares dos “Lusíadas” debaixo do braço e ia-se para a arcadas do mosteiro de S. Domingos, para a escadaria do Hospital de Todos os Santos, onde poisavam os livreiros de cordel e punha branca um ou outro mercador de livros, belfurinhar o poema.

Encadernado em pergaminho como era de moda, por doze vinténs, não era dado nem vendido. E todavia não lhe pegavam. Tanto a poesia como o romance como o latim tinham pouca procura.

O que se vendia como canela eram os “Autos” de mestre Gil, a “Comédia Eufrosina”, o “Reportório dos Tempos” e a “Cartinha para ensinar a ler”. Bem berrava ele na voz rouca em português mascavado: Os “Lusíadas”! qui vereis em verso rimado a história da que depois de morta foi raínha; os altos feitos dos Doze de Inglaterra e do Magriço; o que se passou na ilha dos Amores com os marujinhos de D. Vasco da Gama…

Eram vozes ao vento. Também todo o dinheiro era pouco para sastres e alfagemes. Os fidalgos de posses, cujos avós eram celebrados no poema, tinham o seu exemplar para o capelão lhes ler e sua oitava lá de século a século. E o Jau, claudicando, que guardava na perna o estigma da argola que arrastara de badistão em badistão na imensa Ásia, a enganar o frio no tabardo esfarrapado, voltava para casa a tinir.

Não tinham aura os “Lusíadas”. Frades e latinistas “achavam-lhes a linguagem difícil, pretenciosa, pouco ao sabor do gosto corrente. Na sua sêde de perfeição Luiz de Camões sacrificara a primeira tiragem, vendendo uns exemplares ao desbarato, rasgando e até queimando outros, tanto saíra mareada de gralhas do tipógrafo, erros de ortografia, faltas de métrica e até de gramática, efeito natural da sua inexperiência de revisor e de uma composição precipitada.

Poucos meses decorridos, no mesmo itálico e no mesmo formato, apenas com o pelicano do frontispício voltado para a esquerda à falta de imagem negativa, cedendo a grande custo a seus rogos, o bom António Gonçalves balançar-se a lançar uma segunda estampa, tomando-lhe parte da edição à sua conta, ficando ele de lhe pagar em prestações o resto.

Essa saíra, se não perfeita, limpa de jaças mais graves que aviltavam a obra. Mas, onde buscar compradores?

Os exemplares da primeira edição impingira-os o Jau a tostão e menos, os da segunda a cruzado em papel seriam ainda um pau por um olho. Mas quem comprava versos em oitava rima, onde as cantava Juno e Júpiter Tonante em vez da Virgem Mãe de Deus e de Cristo Nosso Senhor ou de prantear Maria Parda?


=Aquilino Ribeiro=

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