A
história das ideias não passa de um desfilar de vocábulos convertidos noutros
tantos absolutos: para disso nos convencermos basta sublinhar os acontecimentos
mais marcantes desde o início do século.
Sabemos
do triunfo da «ciência» na época do positivismo. Quem se reclamasse da ciência
podia divagar á vontade;: tudo lhe era permitido a partir do momento em que
invocasse o “rigor” ou a “experiência”. A Matéria e a Energia entraram pouco
depois em cena: o prestígio das suas maiúsculas não foi duradouro.
A
indiscreta e insinuante Evolução conquistava terreno à sua custa. Sinónimo
erudito do “progresso”, contrafacção optimista do destino, pretendia eliminar
todo o mistério e legislar sobre as inteligências: formou-se à sua volta um
culto comparável ao que se dedicava ao “povo”.
Embora
tenha tido a sorte de sobreviver à sua voga, já não desperta qualquer entoação
lírica: quem a exalta compromete-se ou faz figura de antiquado.
Nos
finais do século XX e início do século XXI, a confiança nos conceitos viu-se
abalada. A intuição, com o seu cortejo: duração, impulso, vida, beneficiaria
dessa situação e instauraria, durante algum tempo, o seu reinado.
Depois,
foram precisas coisas novas: e chegou a vez da Existência. Palavra mágica que
excitou especialistas e diletantes. Finalmente, fora descoberta a chave. E já
não se era um indivíduo, era-se um Existente.
E
hoje, também já se não é um existente, mas penas um Sobrevivente, já que se
atingiu á época da Sobrevivência.
Quem
fará um dicionário dos vocábulos segundo as épocas, um recenseamento das modas
filosóficas?
Semelhante
empreendimento revelar-nos-i que os sistemas envelhecem pela sua terminologia,
desgastam-se sempre em virtude da sua forma.
Este
pensador, em quem estaríamos ainda interessados, recusamo-nos a lê-lo porque nos é impossível
suportar o aparato verbal que reveste as suas ideias, o que se toma de
empréstimo à filosofia é nefasto para a literatura.
(Bast
pensar em certos trechos de Novalis estragados pela linguagem fichteana.)
As
doutrinas morrem por aquilo que lhes assegurou o sucesso: pelo estilo. Para
reviverem, é preciso que as repensemos na nossa gíria ou que as imaginemos
antes da su elaboração, na sua realidade informe.
Entre
os vocábulos importantes, há um cuja carreira particularmente longa suscita
reflexões melancólicas. Refiro-me à Alma.
Quando
consideramos o seu estado actual, o seu fim digno de dó, ficamos como que
interditos. No entanto, a alma começara bem.
Lembremo-nos
do lugar que o neoplatonismo lhe concedia: princípio cósmico, derivação do
mundo inteligível. Todas as doutrinas antigas, marcadas pelo misticismo, se lhe
referiam.
Menos
preocupado com definir-lhe natureza do
que com determinar a sua utilização pelo crente, o cristianismo reduziu-a a
dimensões humanas. Como não deve alma
ter então chorado o tempo em que incluía a natureza e gozava do privilégio de
ser simultaneamente uma imensa realidade e um princípio explicativo!
No
mundo moderno, conseguiu conquistar terreno a pouco e pouco e consolidar as suas
posições.
Crente
e descrentes tinham que a levar em conta, que contemporizar com ela e que a
fazer valer; ainda que para a combater, todos continuavam a citá-la, mesmo na
maré-cheia do materialismo; e os filósofos, tão reticentes a seu respeito,
continuavam, apesar de tudo, a reservar-lhe um caminho nos seus sistemas.
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