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domingo, 8 de setembro de 2013

A lei fundamental


Comecemos por acreditar que o Governo quer mesmo encolher o Estado e que os senhores juízes do Tribunal Constitucional se limitam a interpretar objectivamente a Constituição.
Então é oficial : a Constituição não permite que o Estado encolha.
Escusado tentar cortar aqui ou ali. Salvo beliscadelas apenas observáveis ao microscópio, não se consegue reduzir a quantidade de funcionários públicos nem os respectivos ganhos a ponto de transformar uma máquina imensa e inviável numa estrutura funcional e suportável.
É assim. É proibido. É - todos em coro, agora - a lei fundamental.
Podia ser pior.
A Constituição podia afirmar explicitamente, ou sugerir à leitura dos senhores juízes do TC, a obrigatoriedade de cada repartição municipal empregar um mínimo de seis mil criaturas.
Ou a impossibilidade de os assalariados dos transportes públicos receberem menos de 32 meses por ano.
Ou a necessidade de cada conservatória do registo civil possuir cinco girafas nas traseiras.
Por sorte, os iluminados que nos gloriosos tempos posteriores à revolução de 1974 redigiram o documento venerado por Jerónimo de Sousa foram suficientemente vagos para que o pessoal das câmaras municipais ainda caiba dentro delas e um inspector-chefe de tracção na CP aufira só 52 mil euros anuais.
E dispensaram as girafas.
Em suma, eis a Constituição que nos calhou e a qual, conforme avisam centenas de comentadores orgulhosos, temos de respeitar.
Infelizmente, a questão não é essa.
Sobretudo se afirmado pelos seus beneficiários e entusiastas, o carácter imperativo da Constituição é tão relevante quanto um pirómano jurar que não passa sem provocar uma labaredazinha semanal.
Logo que o enfiem na cadeia, passa, sim senhor.
Exigir que vivamos de acordo com atoardas rabiscadas num papel é fácil.
E é fácil também perceber se somos capazes de o fazer: não somos.
Do alto da sua sensatez, as Sagradas Escrituras permitiram que, ao longo de décadas, às vezes devagarinho, outras vezes a uma velocidade propícia a náuseas, erguêssemos a extraordinária situação em que hoje nos encontramos.
Respeitar a Constituição representa, afinal, entrar em bancarrota, processo que somente as esmolas da "Europa" tornaram demorado.
Quando o contribuinte alemão reduziu a tolerância devotada a mendigos estroinas, compreendemos que viver segundo a Constituição leva à morte certa.
Ou não compreendemos? Obviamente, nem por isso.
Em qualquer dos casos, a discussão é académica.
Ao contrário do Governo, os factos preocupam-se pouquíssimo com os senhores juízes do TC e já começaram a impor uma ordem assaz inconstitucional.
Uma ordem brusca, nada simpática e, até certa altura, evitável, mas que a prazo e à força reduzirá o Estado às dimensões adequadas, nos dias que correm muito inferiores às alegadamente pretendidas pelo Governo e às desejadas pelo bom senso.
A realidade é a verdadeira lei fundamental.

Segunda-feira, 2 de Setembro

Gestão de Carreira

A conta em que os políticos têm os eleitores é realmente muito baixa.
E quanto maior a "proximidade", menor a conta.
Em Vila Nova de Gaia, por exemplo, a autarquia remodelou um pavilhão desportivo, obra imorredoura que merece festim de inauguração e concerto de Tony Carreira.
Por manifesto azar, os candidatos que ali concorrem contra o PSD acharam que o evento apresentaria, cito, "laivos evidentes de comício".
E o ainda presidente concordou.
Para Luís Filipe Menezes, que garantiu desconhecer o assunto até há dias, o evento não seria, cito outra vez, "eticamente enxuto" em período de campanha eleitoral.
Logo, aprovou a inauguração e cancelou o concerto.
Alguns estranharão que o responsável máximo de uma câmara municipal  ignore a agenda da instituição.
Por mim, prefiro estranhar que todos, desde os actuais ocupantes da câmara aos sujeitos que gostariam de vir a ocupá-la, achem que um espectáculo de Tony Carreira arrecada votos.
Por mero interesse antropológico, aconteceu-me ouvir meia dúzia dos sucessos da criatura, ao que se vê no YouTube decalcados quase à letra de cantilenas mexicanas e francesas, e posso garantir que nenhum ser humano emocionalmente equilibrado ficaria agradecido a quem os submetesse a semelhante atrocidade.
Pelo contrário, a tendência natural de um infeliz flagelado pelos sons produzidos na garganta do sr. Carreira é jurar vingança dos torcionários.
Imaginar que a população de Vila Nova de Gaia apreciaria tanto os três acordes de Sonhos de Menino que ficaria imediatamente decidida a votar no partido no poder é presumir que a população de Vila Nova de Gaia não regula bem.
Ou, legítima ou abusivamente, o dr. Menezes possui um profundo desprezo pela sanidade mental dos cidadãos que o elegeram uma data de vezes ou - hipótese a considerar - o dr. Menezes respeita invulgarmente os cidadãos e sabe que eleitoralismo não é promover um espectáculo do sr. Carreira  : eleitoralismo é cancelar o espectáculo.
Neste caso, a decência do dr. Menezes representaria uma excepção raríssima na classe política.
Já os senhores que concorrem para substitui-lo representam, de certeza absoluta, a norma.

Terça-feira, 3 de Setembro

Morte anunciada

As "universidades de Verão" de PS e PSD parecem mais aborrecidas do que aquele canal que só mostra fulanos a jogar cartas.
A Festa do Avante! é uma feira de merchandising ditatorial.
E nem quero saber o que é que o CDS faz para anunciar o fim das férias.
Já o Bloco de Esquerda é uma alegria : há sempre acampamentos, fóruns e encontros onde se apoia a "questão palestiniana", se ensina a manufacturar batuques e, pelo menos este ano, a promover legislação contra o piropo.
O tema foi desencantado por duas senhoras da seita, altamente preocupadas com os criminosos que elogiam a anatomia feminina na via pública.
Garantem que os elogios são "machistas" e ofensivos para a mulher (no sentido universal usado na péssima poesia, estilo Vinícius de Moraes : tu, mulher, que no ventre germinas vida) e, naturalmente, exigem medidas adequadas.
Claro que, para consumo exterior ao Bloco, "piropo" diz-se "assédio verbal" e "proibir" diz-se "abrir o debate".
E que se estranha a exclusão, no debate entretanto aberto, do assédio verbal entre homossexuais.
E que se duvida da pertinência em discutir semelhante irrelevância. E que toda a gente já dedicou ao problema a galhofa que o problema merece.
Falta é constatar o que muitos previram há anos : cedo ou tarde, o Bloco ficaria sem assunto.
Depois de lutar pela legalização do aborto (aprovado), pela institucionalização do casamento gay (aprovada), pela adopção de crianças por casais do mesmo sexo (em vias de facto), pela abolição das touradas (uma palermice regional), pela legalização das drogas leves (ninguém liga) e pela perseguição dos transgénicos (idem), o Bloco perdeu a razão de ser - até na perspectiva dos que lhe reconheciam alguma.
Não foi à toa que o dr. Louçã escapou pela esquerda baixa. Hoje o Bloco "debate" o piropo como amanhã talvez "debata" a erradicação do berlinde a pretexto da discriminação dos cubos. Um dia tocarão campainhas para espalhar a palavra do senhor (doutor Semedo), e nenhuma porta se abrirá.
Não sendo uma tragédia humanitária, dá pena.
E vontade de rir.



L.A.V.

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