Comecemos
por acreditar que o Governo quer mesmo encolher o Estado e que os senhores
juízes do Tribunal Constitucional se limitam a interpretar objectivamente a
Constituição.
Então é
oficial : a
Constituição não permite que o Estado encolha.
Escusado tentar cortar aqui ou ali. Salvo beliscadelas apenas
observáveis ao microscópio, não se consegue reduzir a quantidade de
funcionários públicos nem os respectivos ganhos a ponto de transformar uma máquina
imensa e inviável numa estrutura funcional e suportável.
É
assim. É proibido. É - todos em coro, agora - a lei fundamental.
Podia ser pior.
A Constituição podia afirmar explicitamente, ou sugerir à leitura
dos senhores juízes do TC, a obrigatoriedade de cada repartição municipal
empregar um mínimo de seis mil criaturas.
Ou a impossibilidade de os assalariados dos transportes públicos
receberem menos de 32 meses por ano.
Ou a necessidade de cada conservatória do registo civil possuir
cinco girafas nas traseiras.
Por
sorte, os iluminados que nos gloriosos tempos posteriores à revolução de 1974
redigiram o documento venerado por Jerónimo de Sousa foram suficientemente
vagos para que o pessoal das câmaras municipais ainda caiba dentro delas e um
inspector-chefe de tracção na CP aufira só 52 mil euros anuais.
E dispensaram as girafas.
Em suma, eis a Constituição que nos calhou e a qual, conforme
avisam centenas de comentadores orgulhosos, temos de respeitar.
Infelizmente, a questão não é essa.
Sobretudo se afirmado pelos seus beneficiários e entusiastas, o
carácter imperativo da Constituição é tão relevante quanto um pirómano jurar
que não passa sem provocar uma labaredazinha semanal.
Logo que o enfiem na cadeia, passa, sim senhor.
Exigir que vivamos de acordo com atoardas rabiscadas num papel é
fácil.
E é fácil também perceber se somos capazes de o fazer: não somos.
Do alto
da sua sensatez, as Sagradas Escrituras permitiram que, ao longo de décadas,
às vezes devagarinho, outras vezes a uma velocidade propícia a náuseas,
erguêssemos a extraordinária situação em que hoje nos encontramos.
Respeitar
a Constituição representa, afinal, entrar em bancarrota,
processo que somente as
esmolas da "Europa" tornaram demorado.
Quando o contribuinte alemão reduziu a tolerância devotada a
mendigos estroinas, compreendemos que viver segundo a Constituição leva à morte
certa.
Ou não compreendemos? Obviamente, nem por isso.
Em qualquer dos casos, a discussão é académica.
Ao contrário do Governo, os factos preocupam-se pouquíssimo com os
senhores juízes do TC e já começaram a impor uma ordem assaz inconstitucional.
Uma
ordem brusca, nada simpática e, até certa altura, evitável, mas que a prazo e à
força reduzirá o Estado às dimensões adequadas, nos dias que correm muito
inferiores às alegadamente pretendidas pelo Governo e às desejadas pelo bom
senso.
A realidade é a verdadeira lei fundamental.
Segunda-feira, 2 de Setembro
Gestão de Carreira
A conta em que os políticos têm os eleitores é realmente muito
baixa.
E quanto maior a "proximidade", menor a conta.
Em Vila Nova de Gaia, por exemplo, a autarquia remodelou um
pavilhão desportivo, obra imorredoura que merece festim de inauguração e concerto
de Tony Carreira.
Por manifesto azar, os candidatos que ali concorrem contra o PSD
acharam que o evento apresentaria, cito, "laivos evidentes de
comício".
E o ainda presidente concordou.
Para Luís Filipe Menezes, que garantiu desconhecer o assunto até
há dias, o evento não seria, cito outra vez, "eticamente enxuto" em
período de campanha eleitoral.
Logo,
aprovou a inauguração e cancelou o concerto.
Alguns estranharão que o responsável máximo de uma câmara
municipal ignore a agenda da
instituição.
Por mim, prefiro estranhar que todos, desde os actuais ocupantes
da câmara aos sujeitos que gostariam de vir a ocupá-la, achem que um
espectáculo de Tony Carreira arrecada votos.
Por mero interesse antropológico, aconteceu-me ouvir meia dúzia
dos sucessos da criatura, ao que se vê no YouTube decalcados quase à letra de
cantilenas mexicanas e francesas, e posso garantir que nenhum ser humano
emocionalmente equilibrado ficaria agradecido a quem os submetesse a semelhante
atrocidade.
Pelo contrário, a tendência natural de um infeliz flagelado pelos
sons produzidos na garganta do sr. Carreira é jurar vingança dos torcionários.
Imaginar
que a população de Vila Nova de Gaia apreciaria tanto os três acordes de Sonhos
de Menino que ficaria imediatamente decidida a votar no partido no poder é
presumir que a população de Vila Nova de Gaia não regula bem.
Ou, legítima ou abusivamente, o dr. Menezes possui um profundo
desprezo pela sanidade mental dos cidadãos que o elegeram uma data de vezes ou
- hipótese a considerar - o dr. Menezes respeita invulgarmente os cidadãos e
sabe que eleitoralismo não é promover um espectáculo do sr. Carreira : eleitoralismo
é cancelar o espectáculo.
Neste caso, a decência do dr. Menezes representaria uma excepção
raríssima na classe política.
Já os senhores que concorrem para substitui-lo representam, de
certeza absoluta, a norma.
Terça-feira, 3 de Setembro
Morte anunciada
As
"universidades de Verão" de PS e PSD parecem mais aborrecidas
do que aquele canal que só mostra fulanos a jogar cartas.
A Festa
do Avante! é uma feira de merchandising ditatorial.
E nem quero saber o que é que o CDS faz para anunciar o fim das
férias.
Já o
Bloco de Esquerda é uma alegria : há
sempre acampamentos, fóruns e encontros onde se apoia a "questão
palestiniana", se ensina a
manufacturar batuques e, pelo menos este ano, a promover legislação contra o
piropo.
O tema
foi desencantado por duas senhoras da seita, altamente
preocupadas com os criminosos que elogiam a anatomia feminina na via pública.
Garantem que os elogios são "machistas" e ofensivos para
a mulher (no sentido universal usado na péssima poesia, estilo Vinícius de
Moraes : tu, mulher, que no ventre germinas vida) e, naturalmente, exigem
medidas adequadas.
Claro
que, para consumo exterior ao Bloco, "piropo" diz-se "assédio
verbal" e "proibir" diz-se "abrir o debate".
E que se
estranha a exclusão, no debate entretanto aberto, do assédio verbal entre
homossexuais.
E que se duvida da pertinência em discutir semelhante
irrelevância. E que toda a gente já dedicou ao problema a galhofa que o
problema merece.
Falta é
constatar o que muitos previram há anos : cedo ou tarde, o Bloco
ficaria sem assunto.
Depois de lutar pela legalização do aborto (aprovado), pela
institucionalização do casamento gay (aprovada), pela adopção de crianças por
casais do mesmo sexo (em vias de facto), pela abolição das touradas (uma
palermice regional), pela legalização das drogas leves (ninguém liga) e pela
perseguição dos transgénicos (idem), o Bloco perdeu a razão de ser - até
na perspectiva dos que lhe reconheciam alguma.
Não foi à toa que o dr. Louçã escapou pela esquerda baixa. Hoje o
Bloco "debate" o piropo como amanhã talvez "debata" a
erradicação do berlinde a pretexto da discriminação dos cubos. Um dia tocarão
campainhas para espalhar a palavra do senhor (doutor Semedo), e nenhuma porta
se abrirá.
Não sendo uma tragédia humanitária, dá pena.
E vontade de rir.
L.A.V.
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