No conjunto das análises clássicas, devem
distinguir-se dois sectores, ou, se se preferir, dois blocos diferentes: Um que
parece ter, em grande medida, perdido a sua validade, pelo menos no que diz
respeito às sociedades industriais, e que portanto se deveria modificar
sensivelmente: é o conjunto, que muitos conhecem, das teorias da pauperização,
da miséria crescente da grande maioria dos membros da sociedade e do facto de
que, a partir desta pauperização e desta miséria, o proletariado deve, senão
necessariamente pelo menos muito provavelmente, chegar a uma tomada de
consciência revolucionária.
Aqui, parece-me que, se realmente queremos
pensar e compreender a realidade social em que vivemos, temos finalmente que
tomar consciência de que a evolução histórica real seguiu um caminho, ao fim e
ao cabo, daquele que se podia esperar.
Hoje, o mundo industrializado constitui,
deste ponto de vista – e apenas deste ponto de vista – um sector privilegiado
no qual as classes operárias dos
diferentes países, até certo ponto, se integraram nas sociedades globais, e no
qual falar ainda em empobrecimento, miséria crescente e orientação
revolucionária do proletariado é, pura e simplesmente, pensar e viver no mito.
Nem por isso é menos certo que tudo está
longe de ser ideal ou muito simplesmente aceitável nestas sociedades.
Tendo assumido novas formas, os problemas do
homem, do seu desenvolvimento e da sua libertação, permanecem particularmente
graves.
Entretanto, isto não altera nada ao facto de
que hoje tudo surge como ultrapassado, e isto mesmo que fosse mais ou menos
válido na segunda metade do século XIX.
É seguro que já não é neste plano que hoje,
para nós, se coloca o problema da libertação do homem e da esperança de futuro.
Inútil lembrar que “para nós” significa aqui para os membros das sociedades
industriais e que em todo o terceiro mundo o problema da miséria conservou toda
a sua angustiante primazia.
Então, Portugal é um país do terceiro mundo?
É-o em muitos aspectos, e tende a piorar, bastando analisar a taxa crescente do desemprego, a forma como são tratados os cidadãos e funcionários públicos,
os menos bafejados pela sorte – fabricada pelos políticos desalmados, numa
sociedade capitalista liberal, em que as relações entre os homens perdem muito
do seu carácter qualitativo e humano para se transformarem em simples relações
quantitativas.
Além disso, a sua essência, enquanto relações
sociais e inter-humanas desaparecem da consciência do homem, para reaparecerem
sob a forma reificada como propriedade das coisas.
Ora exemplos abundam e basta citar o das
relações entre os participantes nas
diferentes etapas da produção de um produto acabado, cuja cooperação desaparece
das consciências para já só se encontrar expressão numa nova propriedade das
mercadorias: o preço, que estabelece no mercado a única relação entre o criador
de gado, o mercador de peles, o retalhista e o consumidor.
Esta situação conduz a uma deformação
fundamental do indivíduo que se exprime nos mais diversos planos, mas de que
basta mencionar um dos aspectos mais importantes: é o facto de, na sociedade
capitalista, o indivíduo se achar cindido em dois, e até em três: o cidadão, o
agente da vida económica ou profissional, o indivíduo privado, tendo em cada um
destes sectores valores e regras de conduta diferentes, e não podendo já
realizar a unidade da sua vida, o desenvolvimento harmonioso da sua
personalidade.
Hoje, o homem, o próprio indivíduo, encontra
progressivamente cada vez menos sectores da vida social em que possa ainda ter
uma iniciativa e uma responsabilidade,
torna-se cada vez mais um ser a quem só se pede que execute decisões em
que não participo, garantindo-lhe em troca uma possibilidade de consumo
acrescida, situação que, claro está, implica um estreitamento e um
empobrecimento perigoso e considerável da sua personalidade.
Este é um processo que se acha ainda no
princípio, e que corre o risco de assumir um lugar cada vez maior à medida que
se desenvolve o capitalismo de organização.
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