Ontem
defendi no Público que Portugal pode não ter alternativa a renegociar a dívida
e a sair do euro. Mas não será nada bonito de se ver:
Quando
pensamos que nada pode correr pior, é sempre possível que tudo piore ainda
mais. Por isso é bom começar a pensar nos cenários de que ninguém nos fala,
sobretudo não nos falam os políticos. Os cenários de falhanço completo da
estratégia seguida nas últimas décadas. Pois é a isso que estamos a assistir.
Há
20 anos, quando Portugal assinou o Tratado de Maastricht, ainda Cavaco Silva
era primeiro-ministro, vivíamos duas imensas ilusões. Nos anos anteriores a
economia portuguesa tinha crescido a um ritmo que não conhecia desde o final da
década de 60, início da década de 70. A adesão à União Europeia e o cavaquismo triunfante
pareciam estar a cumprir o sonho de gerações de portugueses, isto é, a rápida
aproximação ao nível de vida da Europa desenvolvida. A economia passava por um
rápido processo de transformação e liberalização. Comprometermo-nos com um
tratado que procurava fazer de toda a União uma espécie de Alemanha gigante
parecia não só razoável como lógico.
Este
sonho não era só português, era de toda a Europa do Sul, e pareceu estar a
materializar-se quando, no caminho para a moeda única, a inflação começou a
desaparecer, as taxas de juro baixaram de forma dramática e pareceu haver
dinheiro para todos os investimentos, mesmos os mais disparatados, e para um
consumo sem limites. Embebedámos-nos, como se embebedaram os gregos, os
espanhóis e os italianos. Nos nossos países aconteceu com o euro o contrário do
que devia ter acontecido. Em vez de nos tornarmos mais disciplinados, como os
actores das economias do Norte da Europa, ficámos mais irresponsáveis. Em vez
de aproveitarmos os mecanismos da moeda única para abrirmos mais as nossas
economias, aprofundando o mercado único, fechámos essas economias, diminuindo o
seu grau de integração com o resto da zona euro. Isso não correspondeu sequer a
uma reacção irracional: as empresas, face ao boom do mercado interno de cada
país, insuflado pelo crédito fácil, deixaram de procurar os mercados externos.
Para usar a linguagem dos economistas, o dinheiro disponível passou do sector
transaccionável para o sector não transaccionável.
Ou
seja, o euro fez-nos muito mal. Não só nestes últimos anos, mas desde que, como
se diz com algum exagero mas também com verdade, começámos a destruir a nossa
indústria e a ver tornarem-se nas grandes empresas nacionais os fornecedores de
serviços protegidos da concorrência (telecomunicações, energia), os grupos de
comércio a retalho e os conglomerados da construção civil.
O
resultado de tantos anos de escolhas erradas foram duas dívidas gigantescas. A
dívida pública está a um passo de ultrapassar os 120% o PIB. E a dívida externa
(que inclui as dívidas das empresas, dos bancos e dos particulares ao exterior)
disparou para valores ainda mais estratosféricos, tendo uma evolução negativa
muito rápida, pois em 1995/96 Portugal praticamente não tinha dívida externa. O
crescimento da dívida pública é o resultado dos défices acumulados pelo Estado;
o crescimento da dívida externa é a consequência de há quase 15 anos Portugal
ter sistematicamente consumido, ano após ano, mais 10% do que aquilo que
produz.
As
intenções de quem negociou o euro e subscreveu Maastricht podem ter sido as
melhores do mundo, e não há dúvidas de que as economias do Norte da Europa,
mesmo as que não aderiram à moeda única (casos da Suécia, Dinamarca ou
Polónia), souberam tirar o melhor partido das oportunidades criadas. Já entre
nós o sonho de ver o nosso portugalito transformado numa versão atlântica e
ensolarada da Alemanha foi apenas uma enorme ilusão. Fatal ilusão.
Hoje
o nosso país está preso numa armadilha. Porque está no euro, não tem política
monetária, logo não pode desvalorizar a moeda para tornar as importações mais
caras e as exportações mais competitivas. Porque está no euro, o Banco de
Portugal não se pode pôr a imprimir moeda para ajudar o Estado a pagar as suas
dívidas e o seu défice. Porque está no euro, está num colete de forças. E o
esforço para sair desse colete de forças está a falhar.
O
processo que iniciámos há pouco mais de um ano é uma tentativa desesperada de
recolocar Portugal num, chamemos-lhe assim, "caminho alemão", ou
"caminho nórdico". Por um lado, diminuir o défice público. Por outro,
reverter os equilíbrios da economia para a fazer exportar mais e importar
menos, processo impossível de conseguir sem uma compressão do consumo interno.
À frente desse processo tem estado o mais "alemão" de todos os
ministros das Finanças da democracia portuguesa, Vítor Gaspar, ele mesmo um
homem das negociações de Maastricht.
Parece
estar a tornar-se óbvio que Portugal não quer, ou não pode, ou não consegue,
seguir este caminho. Não o digo por causa das manifestações do 15 de Setembro.
Digo-o por causa do que significou o Conselho de Estado. E das exigências da
Concertação Social. Digo-o porque os portugueses, como é seu hábito secular,
querem tudo e não querem nada. Ainda ontem era muito significativa a capa do
Jornal de Negócios sobre o que os portugueses quereriam do próximo Orçamento do
Estado: "Lóbis, corporações, empresários e sindicatos estão juntos. Pedem
menos cortes, mais investimento, apoios às exportações, redução selectiva da
TSU, descida do IVA e aposta na reabilitação urbana." Ou seja, querem como
de costume que tudo fique na mesma.
Como
se isto não chegasse, os nossos números são demasiado pesados. O pagamento de
juros da dívida pública já leva mais dinheiro do que o que se gasta em Educação
ou em Saúde, e, enquanto existir défice público - mesmo que seja apenas de 3%
-, essa dívida vai continuar a subir. Por outro lado, para voluntariamente
chegarmos ao equilíbrio orçamental, teríamos de cortar quase um quinto das
despesas do Estado e da Segurança Social, se tomarmos como referência o ano de
2010. Isso não é possível sem abdicar de boa parte do nosso Estado social, o
qual consome três quartos da despesa pública primária.
Mas
há mais. Mesmo aquilo que está a correr melhor - o equilíbrio das nossas contas
externas - é muito insuficiente para permitir grandes optimismos. Um economista
que se tem dedicado ao tema, Ricardo Cabral, estima que para reequilibrar em 15
anos a nossa situação necessitaríamos de crescer 4% ao ano e de ter um saldo
positivo na balança comercial de 6% (o tal saldo que foi sempre negativo desde
a II Guerra Mundial). Ninguém acredita que seja possível.
Tenho
falado nos últimos meses com muitos economistas, incluindo com antigos
ministros das Finanças, que conhecem os números e convergem quase sempre num
ponto: assim não vamos lá. Curiosamente quase todos eles se inibem de tirar as
consequências, porque isso implica tocar em dois tabus. São esses tabus que
temos de começar a discutir.
O primeiro tabu é o da renegociação das dívidas. Não
que essas dívidas não existam, como dizem os viciados em despesa pública. Mas
porque genuinamente não conseguimos pagá-las e elas condicionam demasiado o
nosso futuro para podermos ter qualquer esperança.
O
segundo tabu é o do abandono do euro, acabando de vez com a ilusão de que
conseguimos ter a disciplina dos alemães. A nossa economia, para nossa
desgraça, não mostrou ser capaz de viver sem inflação e sem desvalorizações.
Será o fim do nosso sonho de convergência com "a Europa", mas marcará
também o regresso a uma vida com os pés na terra.
O
país que sairia destas duas medidas não seria bonito de se ver, mas seria ao
menos um país de novo entregue a si próprio, que teria reconquistado a
liberdade que pusemos nas mãos da troika. É altura de começar a discutir o
preço que teriam para todos nós estas alternativas. Estou cansado da conversa
sobre os "cortes" por parte de quem, na verdade, não quer
"cortes" nenhuns e tem como único sonho encontrar quem que nos pague
as contas, chamando a isso "solidariedade".
=J. M. F./Público=
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