Se em Dante
gostei dos nove círculos e dos três girões, dos dez fossos e das quatro zonas
que formam o inferno, ou até das sete cornijas do purgatório, o que possibilita
não a busca de uma Beatriz de sonho, mas a pressecução da demanda de um
entendimento daquilo que provoca, aqui e agora, o inferno que alguns vivem
nesta terra, a miséria que percorre de um extremo ao outro essas terras
infernais só muito raramente foi tratada como objecto filosófico.
Mais frequentemente,
a sociologia apropria-se dela para a nomear, a descrever, a designar, afirmar
que existe, quantificá-la, e isso já é muito.
Mas, onde
estão os filósofos? Que fazem e dizem os intelectuais sobre esta questão, que,
de tão prolongada e dramática, está a colocar os cidadãos não às portas do
inferno, nem do purgatório, mas bem no centro de todas as fogueiras satânicas.
Mais
preocupados com as misérias do mundo quando estas parecem nobres, dignas e
susceptíveis de abrir as portas para uma consagração mediática, ou um
hipotético prémio Nobel, não são parcos em manifestos, petições, tomadas de
posição quando a miséria é limpa, isto é, quando é originada por combates
planetários entre potências desnorteadas.
Mas, a
miséria suja, a dos sem grado, dos indigentes, dos heróis de todos os dias, que
morrem nas escadarias dos prédios por causa do frio e da fome, ou dos que
galgam quotidianamente os psseios à espera de receber como esmola um trabalho
miserável?
E a dos
homens e mulheres que nas fábricas, nas oficinas e nas empresas oferecem
continuamente o seu tempo, energia e desejos às ávidas goelas dos seus algozes
capitalistas?
Onde estão os
filósofos que elaboraram a teoria da miséria, os que, depois de Proudhon e de
Mrx, seguidos por Simone Weil, fizeram da condição dos indigentes e dos
operários um objecto filosófico tão digno, politicamente, quanto a questão dos
direitos do homem, do direito de ingerência ou do fim da história?
Ainda estou à
espera que surja no horizonte um contemporâneo, menos preocupado pela sua
inscrição na actualidade de uma moda do que pela lógica de um trabalho
autenticamente filosófico e que seja para a sua época o que Proudhon foi para a
dele, ao escrever a sua “Filosofia da Miséria”, uma obra que, apesar das suas
limitações, permanece o protótipo do trabalho político por excelência: aquele
que consiste em situar em termos claros o que, segundo o seu ponto de vista
como pensador, constitui o objecto de maior escândalo.
É que existe
em Portugal, no quadro de uma proximidade dolorosa e quotidiana, um inferno
dentro do qual se conserva uma grande parte de mulheres, homens e crianças, que
são, dia após dia, sacrificados às exigências dos monstros existentes, adeptos
da máxima austeridade, que parecem sentir gozo com todas as tremendas privações
a que sujeitam essa grande parte da população nacional.
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