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terça-feira, 29 de outubro de 2013

«VENCER O VAZIO PORTUGUÊS»

O espaço encontra-se fraccionado como um território no qual se desenham e se determinam,  quase em sobreposições simbólicas com os dejectos,, zonas controladas ou, pelo menos, submetidas a leis não escritas, referentes à etologia mais elementar: a luta pela existência e pelo espaço vital, o direito ao terreno e ao primeiro ocupante, a impiedosa selecção, a gestão solitária ou tribal dos bens e das riquezas, a matilha formada à maneira dos rebanhos.

Os que anunciam, impacientes, o final da História, deveriam, em certos casos, interessar-se pelo regresso da pré-história.

Deste modo, os princípios teóricos herdados do neolítico encontram a sua ilustração prática nos territórios onde se pode pedir esmola sem se intrometer no espaço do outro: vãos de escada, caves de imóveis, entradas de edifícios colectivos, desvãos, escadarias e outros locais inabitados que podem ser elaborados, consignados, aos mais esperados, que não utilizados para preservar do destino o que resta de laços e raízes com o mundo daqueles que não são “danados”: os papéis, os documentos, os objectos, os fetiches – tudo pressupõe e necessita de uma arregimentação do espaço e de um domínio das parcelas, consoante a ordem das forças e das necessidades vitais.

Um tempo reduzido ao imediato, um espaço ordenado em virtude dos princípios postulados por Darwin, constituem as únicas riquezas que ainda restam ao “danado”. É por isso que ele não se deixa despojar daquilo que ainda lhe resta como seu, nas instituições caritativas – os mesmos amadores de neologismos pudicos dizem caridosas – onde, para ser admitido, tem até de abandonar o livre desfrutar do tempo e do espaço em benefício de outras marcas impostas pela instituição: emprego do tempo, distribuição dos quartos, renúncia à pouca autonomia que resta, em proveito de ordens provenientes dos responsáveis que anunciam as horas a que ele se deve levantar, deitar e tomar as refeições, obrigando-o a despir-se, a lavar-se, a ser calibrado, tudo isto consentido se se abdicar, entretanto, do que subsiste como margem de manobra.


Paradoxalmente, a rua continua a ser o que resta ao danado quando lhe suprimiram tudo  - bem se pode dizer que se trata, às vezes, de um luxo incrível para aqueles que só  têm um corpo exigente e dorido, frágil e imperioso.  Mesmo que tenha de partilhar esta geografia monstruosa com os cães vadios, os ratos famintos e os dejectos animais ou outros caixotes do lixo entornados, o danado mostra uma excepcional vitalidade, uma coragem inominável e uma força que estou longe de crer que seja tão manifesta naqueles a quem deve o seu estado: os guardas das galés do capitalismo desenfreado.

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