O espaço
encontra-se fraccionado como um território no qual se desenham e se
determinam, quase em sobreposições
simbólicas com os dejectos,, zonas controladas ou, pelo menos, submetidas a
leis não escritas, referentes à etologia mais elementar: a luta pela existência
e pelo espaço vital, o direito ao terreno e ao primeiro ocupante, a impiedosa
selecção, a gestão solitária ou tribal dos bens e das riquezas, a matilha
formada à maneira dos rebanhos.
Os que
anunciam, impacientes, o final da História, deveriam, em certos casos, interessar-se
pelo regresso da pré-história.
Deste modo,
os princípios teóricos herdados do neolítico encontram a sua ilustração prática
nos territórios onde se pode pedir esmola sem se intrometer no espaço do outro:
vãos de escada, caves de imóveis, entradas de edifícios colectivos, desvãos,
escadarias e outros locais inabitados que podem ser elaborados, consignados,
aos mais esperados, que não utilizados para preservar do destino o que resta de
laços e raízes com o mundo daqueles que não são “danados”: os papéis, os
documentos, os objectos, os fetiches – tudo pressupõe e necessita de uma
arregimentação do espaço e de um domínio das parcelas, consoante a ordem das
forças e das necessidades vitais.
Um tempo
reduzido ao imediato, um espaço ordenado em virtude dos princípios postulados
por Darwin, constituem as únicas riquezas que ainda restam ao “danado”. É por
isso que ele não se deixa despojar daquilo que ainda lhe resta como seu, nas
instituições caritativas – os mesmos amadores de neologismos pudicos dizem
caridosas – onde, para ser admitido, tem até de abandonar o livre desfrutar do
tempo e do espaço em benefício de outras marcas impostas pela instituição:
emprego do tempo, distribuição dos quartos, renúncia à pouca autonomia que
resta, em proveito de ordens provenientes dos responsáveis que anunciam as
horas a que ele se deve levantar, deitar e tomar as refeições, obrigando-o a
despir-se, a lavar-se, a ser calibrado, tudo isto consentido se se abdicar, entretanto,
do que subsiste como margem de manobra.
Paradoxalmente,
a rua continua a ser o que resta ao danado quando lhe suprimiram tudo - bem se pode dizer que se trata, às vezes,
de um luxo incrível para aqueles que só têm um corpo exigente e dorido, frágil e
imperioso. Mesmo que tenha de partilhar
esta geografia monstruosa com os cães vadios, os ratos famintos e os dejectos
animais ou outros caixotes do lixo entornados, o danado mostra uma excepcional
vitalidade, uma coragem inominável e uma força que estou longe de crer que seja
tão manifesta naqueles a quem deve o seu estado: os guardas das galés do
capitalismo desenfreado.
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