=Aquilino Ribeiro=
‘Arca de Noé’
Com a sua bolsinha de amostras às costas,
tamacos ferrados trrape-trrape, carapuçça na cabeça e quatro vinténs na
algibeira, foi Pedro assentar praça.
No quartel, depois de lhe darem o nº 27,
mandaram-no formar na parada. Botava uma boa mão travessa acima dos mais altos.
Embora mirolho, o sargento Viriato não mpôde
deixar de reparar nele e exclamou com ares superiores, próprios das sua
patente, para um galucho que não é nada neste mundo:
- Caspité, que bela estampa de animai!
- Animal será ele – replicou Pedro. – Sou cristão
e baptizado, Pedro de Felícioa para servir a quem se der ao respeito
- Cala a boca, bruto! –gritou-lhe o sargento,
meio encavacado, tanto mais que os oficiais riam à socapa, mas sem poder corar,
porque de tez era mais vermelho que um tomate, mas um tomate a cair de maduro:
- Mete-te na forma…Anda-me depressa! Estão
prontos?... Meia volta à esquerda!...
Manobraram todos para o lado próprio excepto
Pedro que rodou para a direita, contente como se não dissesse: um carneiro vai
com os outros.
- Idiota, não sabes distinguir a mão direita
da mão esquerda? – perguntou o sargento instrutor no tom cacarejado e satisfeito
de quem apanhou por baixo o irmão desastrado que lhe pisou os calos.
No seu embaraço olhou o galucho ora para uma
mão ora para a outra, como se pela primeira vez visse tais extremidades do
corpo ou lhe revelassem acerca delas qualquer coisa patusca em que não tivesse
feito reparo.
- Não sabes?... A direita é esta… esta.
Espera, para não te enganares outra vez, mete-se-lhe lá uma pedra – e o sargento
Viriato procurou uma pedra que meteu na
mão do recruta, acrescentando: -
aperta-a bem; não a deixes cair. Onde estiver a pedra, já sabes, está a mão
direita. Percebeste? Deixa agora ver a outra mão… Repara bem, não tem nada lá
dentro; é a esquerda. Não tem nada lá dentro, quer dizer, não tem lá a pedra.
Estás a perceber? Temos, pois, que a mão que não tem pedra é a esquerda, es…quer…daaaa.
- Na minha terra chama-lhe a canhota –
observou Pedro.
- Canhota ou esquerda é a mesma coisa. É
contigo o nome que lhe queiras dar. O que eu te peço é que não esqueças: a mão
que tem pedra é a direita; a mão que não tem pedra é a esquerda. Não custa nada
a entender. Entendeste tu?
Acenou Pedro que sim e o sargento em voz heróica
comandoux:
- Sentido! Es…quer…daaaa volver…. Marche!
A coluna pôs-se em movimento na direcção
indicada, salvo aquele troço que ficara àquém de Pedro e que ele não deixava
avançar, tendo rompido o passo em sentido oposto e ali natendo a bota.
- Meu alarve! – berrou o sagento. – Não te
disse que que a esquerda é a do lado da mão que não tem pedra?... Mostra lá…
Abriu Pedro a mão e com assombro de todos a
pedra estava lá. Uma pedrinha pequenota como um ovo, branca, a rir-se daquilo
tudo. Também os oficiais desataram às gargalhadas, enquanto o sargento corria
para ele de punho fechado, julgando que era caçoada:
- Mudaste a pedra, alma do diabo… Para que
mudaste a pedra?
- Não senhor, não mudei. Apanhei-a do chão.
O sargento deu-lhe uma cotovelada com
desdém,mas a certa distância não fosse o bruto coucinhar. Pedro, como o roble
que fica indiferente ao vendaval, nem estremeceu. Fez-lhe depois o sargento Viriato deitar fora a pedra da mão esquerda e guardar a da mão direita;
apertando-lhe em seguida os dedos contra ela, ensinou com santa paciência:
- Esta é a direita, cavalo. A direita!
Aquela, portanto, que não tem pedra é a esquerda.
- Mas se a direita é a direita porque tem a
pedra, se eu meter também uma pedra na esquerda fica tão direita como a
direita, ou está a mangar comigo? – respondeu o galucho, além de
raciocinador, repontão.
Em resposta, o sargento Viriato deu-lhe uma
estalada e Pedro, vendo-se ofendido e esquecendo-se de que não estava no
arraial da sua terra, apanhou do chão a pedra do malefício, a pedra zombeteira,
e com quanta força tinha atirou-lha à cabeça.
E se bem que fosse duro o casco do sargento
Viriato e protegido por uma vasta guedelha, o casco rachou e espichou o sangue.
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