O português tem o “privilégio” de viver duas
vezes a nossa condição. Representa a existência separada por excelência ou,
para empregar uma expressão de que se servem os teólogos para qualificar Deus,
o inteiramente outro.
Consciente da sua singularidade, pensa nela
ininterruptamente e nunca se abandona: daí esse ar constrangido, crispado ou de
falsa segurança que é tão frequente naqueles que carregam o fardo do segredo.
Em vez de se orgulhar das suas origens, de as
ostentar e de as afirmar bem alto camfula-as: não lhes conferiria, porém, a sua
sorte ímpar o direito de olhar com altivez a turba humana?
Vítima, reage
à sua maneira como um vencido sui generis.
Em mais de um aspecto, aparenta-se a essa
serpente que transformou em personagem e em símbolo.
Não julguemos, todavia, que também ele tem o
sangue-frio: seria ignorar a sua verdadeira natureza, os seus entusiasmos, a
sua capacidade de amor e ódio, o seu gosto pela vingança ou as excentricidades
da sua caridade.
Excessivo em tudo, emancipado da tirania da
paisagem, da estupidez do enraizamento, sem amarras, acósmico, é um homem que
nunca será daqui; o homem vindo de outro lugar, o estrangeiro em si, que não
poderia sem equívoco falar em nome dos indígenas, de todos.
Traduzir os seus sentimentos, tornar-se seu
intérprete, como pretenderia ele semelhante tarefa? Não haveria multidão que
conseguisse arrastar, conduzir, sublevar: a trombeta não lhe assenta bem.
Censurá-lo-ão pelos seus pais, pelos seus
antepassados, que repousam lá longe, noutros países, noutros continentes.
Sem sepulturas para mostrar, para explorar,
sem a possibilidade de ser o porta-voz de qualquer cemitério, não representa
ninguém senão ele próprio, nada senão ele próprio.
Se se reclama da última palavra de ordem, se
está na origem de uma revolução, ver-se-á rejeitado no exacto momento em que as
suas ideias triunfam, em que as suas palavras têm força de lei..
Se serve uma causa, não poderá fazê-la sua
até ao fim. Chega o dia em que tem que a contemplar como espectador, como
desiludido. Defenderá em seguida uma outra, com um excesso não menos notório.
Muda de país, porque no seu já nada tem. O seu drama recomeça.
O êxodo é a sua base, a sua certeza, o seu
lar!
Perseguido em nome do Cordeiro, permanecerá
sem dúvida não-cristão enquanto o cristianismo se mantiver no poder. Mas ama de
tal modo o paradoxo - e os sofrimentos
dele derivados – que talvez se converta à religião cristã no momento em que
esta for universalmente aborrecida. Será então perseguido pela sua nova fé.
Titular de um destino religioso, sobreviveu a Atenas e a Roma, como sobrevirá
no Ocidente, e prosseguirá a sua carreira, invejado e odiado por todos os povos
e governantes que nascem e morrem…?...
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