Desde o inicio das manifestações de junho que
o perfil do engajamento é questionado. Tidas como evento de classe média
branca, organizadas por universitários da USP, marcadas para ocorrer em áreas
nobres como avenida Paulista ou Largo de Pinheiros, obtiveram o desdém de boa
parte da população. Era discurso recorrente que, enquanto a periferia não
aderisse ou enquanto o morro não descesse para o asfalto no Rio, a coisa não
deveria ser levado a sério. Isso sim era algo temido. Que a revolta aflorasse.
Pois bem,
ela parece ter tido sua primeira fagulha neste final de semana. Pequena e ainda
aparentemente sem indícios de continuidade, não deve ser desprezada (os
primeiros protestos do MPL lá em 2011 ou mesmo antes, também não foram
observados com atenção e deu no que deu).
Embora as
notícias, as polícias e os governos estejam dispostos a jogar tudo no mesmo
balaio, o que ocorreu na zona norte no último final de semana é algo diverso
(mas nem tão desconectado) das manifestações que se espalham via internet. O
que ocorreu foi revolta.
E há
diferença? Sim, em número, gênero e grau. Manifestações são marcadas com
antecedência, local e horário definidos. A adesão é ideológica.
A revolta
explode após o transbordamento da paciência, e exigir racionalidade durante a
ocorrência é que é irracional. A manifestação tem queima lenta como a madeira.
A revolta é como pólvora.
No mais, não
se pode fechar os olhos para o que está ocorrendo. A aparente desconexão entre
as manifestações do centro e a revolta da periferia pode ser não ilusória mas
apenas momentânea. “Um exemplo é a Turquia. Primeiro a população se manifestou
contra a construção do shopping center para defender o espaço verde do local.
Depois essa manifestação se transformou em uma revolta contra o governo”,
explica Tania Regina de Luca, professora do departamento de história da Unesp
(Universidade Estadual Paulista). De fato, já corre nos últimos dias uma
aproximação entre manifestantes da “classe média branca” junto à revolta da
“periferia”. A página Jardim Brasil Manifestação (local onde ocorreu uma das
mortes) criada na terça-feira, já possui 1.629 seguidores em dois dias de
existência, com vários participantes de outras causas dando “todo apoio à
luta”. Esse muro pode estar para ser derrubado. Todos já vimos que é possível a
união fora do facebook também. Ali é só o começo.
O Jaçanã,
imortalizado por Adoniran Barbosa como um bucólico e longínquo bairro
paulistano, aproximou-se do centro com a velocidade de um trem-bala. Ganhou as
manchetes pelo que há de mais brutal no Brasil: a desigualdade.
As mortes de
dois adolescentes, executados por PMs no intervalo de 24 horas, acenderam o
pavio da revolta. Revolta porque o garoto Douglas Rodrigues (17 anos), pegou o
trem das onze mais cedo do que devia. Revolta porque o garoto Jean Nascimento
(17 anos), foi condenado à morte em situação ainda nebulosa.
São
situações inimagináveis nas manifestações centrais da cidade. Em duas
oportunidades (em 11 de junho e no recente 25 de outubro), policiais chegaram a
sacar suas armas e apontar contra manifestantes. Mas não houve disparo. Nem
mesmo diante do espancamento de um coronel. Na periferia, o buraco é mais
embaixo. No mesmo Jaçanã, há cerca de um ano, sete pessoas foram mortas num
intervalo de apenas quatro horas dois dias após um soldado da Rota ser baleado.
À época, vizinhos contaram que viaturas estiveram duas vezes no local antes da
chacina realizando abordagens em busca de informações a respeito dos autores do
atentado contra o policial e eram informados de que não deveriam ficar na rua
depois das 20 horas. Toque de recolher oficial.
Na
periferia, não só a polícia atira primeiro para perguntar depois, como o
tratamento dado durante a reação popular é muito mais violento do que os
presenciados nas regiões centrais. Mães e avós dos garotos assassinados foram
intimidadas pela ronda policial até mesmo durante entrevistas à redes de TV.
Isso é muitas vezes mais cruel que as bombas de gás e balas de borracha
atiradas, aí sim idênticas tanto na avenida Paulista quanto na rua Bacurizinho
do Jardim Brasil.
Como consta
em um post de um morador: "Verme não quer saber não! E sabe de uma coisa?
Se fosse um morador de Perdizes quem tivesse sido assassinado, queria ver se
haveria ASPAS na palavra inocente. Tem polícia que não tem respeito com ninguém,
que dá tiro assim de graça, porque se é preto e da perifeira FODA-SE né? E
depois que o povo se revolta, ainda acham ruim. Porque eu digo, essa POLÍCIA
MILITAR tem que acabar, enquanto houver esses vermes o Brasil não vai ter paz,
pelo menos não na periferia."
Isso é
revolta, não manifestação.
E. F.
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