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domingo, 13 de outubro de 2013

«O FILHO DE FELÍCIA NO REGIMENTO»

=Aquilino Ribeiro=

‘Arca de Noé’

Com a sua bolsinha de amostras às costas, tamacos ferrados trrape-trrape, carapuçça na cabeça e quatro vinténs na algibeira, foi Pedro assentar praça.

No quartel, depois de lhe darem o nº 27, mandaram-no formar na parada. Botava uma boa mão travessa acima dos mais altos.

Embora mirolho, o sargento Viriato não mpôde deixar de reparar nele e exclamou com ares superiores, próprios das sua patente, para um galucho que não é nada neste mundo:

- Caspité, que bela estampa de animai!

- Animal será ele – replicou Pedro. – Sou cristão e baptizado, Pedro de Felícioa para servir a quem se der ao respeito

- Cala a boca, bruto! –gritou-lhe o sargento, meio encavacado, tanto mais que os oficiais riam à socapa, mas sem poder corar, porque de tez era mais vermelho que um tomate, mas um tomate a cair de maduro:

- Mete-te na forma…Anda-me depressa! Estão prontos?... Meia volta à esquerda!...

Manobraram todos para o lado próprio excepto Pedro que rodou para a direita, contente como se não dissesse: um carneiro vai com os outros.

- Idiota, não sabes distinguir a mão direita da mão esquerda? – perguntou o sargento instrutor no tom cacarejado e satisfeito de quem apanhou por baixo o irmão desastrado que lhe pisou os calos.

No seu embaraço olhou o galucho ora para uma mão ora para a outra, como se pela primeira vez visse tais extremidades do corpo ou lhe revelassem acerca delas qualquer coisa patusca em que não tivesse feito reparo.

- Não sabes?... A direita é esta… esta. Espera, para não te enganares outra vez, mete-se-lhe lá uma pedra – e o sargento Viriato  procurou uma pedra que meteu na mão do recruta, acrescentando:  - aperta-a bem; não a deixes cair. Onde estiver a pedra, já sabes, está a mão direita. Percebeste? Deixa agora ver a outra mão… Repara bem, não tem nada lá dentro; é a esquerda. Não tem nada lá dentro, quer dizer, não tem lá a pedra. Estás a perceber? Temos, pois, que a mão que não tem pedra é a esquerda, es…quer…daaaa.

- Na minha terra chama-lhe a canhota – observou Pedro.

- Canhota ou esquerda é a mesma coisa. É contigo o nome que lhe queiras dar. O que eu te peço é que não esqueças: a mão que tem pedra é a direita; a mão que não tem pedra é a esquerda. Não custa nada a entender. Entendeste tu?

Acenou Pedro que sim e o sargento em voz heróica comandoux:

- Sentido! Es…quer…daaaa volver…. Marche!

A coluna pôs-se em movimento na direcção indicada, salvo aquele troço que ficara àquém de Pedro e que ele não deixava avançar, tendo rompido o passo em sentido oposto e ali natendo a bota.

- Meu alarve! – berrou o sagento. – Não te disse que que a esquerda é a do lado da mão que não tem pedra?... Mostra lá…

Abriu Pedro a mão e com assombro de todos a pedra estava lá. Uma pedrinha pequenota como um ovo, branca, a rir-se daquilo tudo. Também os oficiais desataram às gargalhadas, enquanto o sargento corria para ele de punho fechado, julgando que era caçoada:

- Mudaste a pedra, alma do diabo… Para que mudaste a pedra?

- Não senhor, não mudei. Apanhei-a do chão.

O sargento deu-lhe uma cotovelada com desdém,mas a certa distância não fosse o bruto coucinhar. Pedro, como o roble que fica indiferente ao vendaval, nem estremeceu. Fez-lhe depois o sargento Viriato deitar fora a pedra da mão esquerda e guardar a da mão direita; apertando-lhe em seguida os dedos contra ela, ensinou com santa paciência:

- Esta é a direita, cavalo. A direita! Aquela, portanto, que não tem pedra é a esquerda.

- Mas se a direita é a direita porque tem a pedra, se eu meter também uma pedra na esquerda fica tão direita como a direita, ou está a mangar comigo? – respondeu o galucho, além de raciocinador, repontão.

Em resposta, o sargento Viriato deu-lhe uma estalada e Pedro, vendo-se ofendido e esquecendo-se de que não estava no arraial da sua terra, apanhou do chão a pedra do malefício, a pedra zombeteira, e com quanta força tinha atirou-lha à cabeça.


E se bem que fosse duro o casco do sargento Viriato e protegido por uma vasta guedelha, o casco rachou e espichou o sangue.

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