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quinta-feira, 23 de junho de 2011

Quando o preto é vida

Ele estava muito afectado. Era incapaz de dizer fosse o que fosse, quase sem olhar os amigos que dele se aproximavam para o cumprimentar, dizendo-lhe: “Sinto muito”. Vestia uma gabarnine clara e usava uma gravata esverdeada com finas riscas brancas.

Quando eu era jovem, tudo era diferente. Os parente mais directamente vinculados ao defunto, iam vestidos de escuro e levavam gravata preta. E, se fosse Inverno, uma braçadeira preta na manga esquerda. Pus uma gravata preta quando morreram meus avós, vesti-me de preto quando morreram meus pais.

Não sei porquê, mas as gravatas pretas, usadas pelos assistentes aos enterros e funerais, costumavam ser finas e bastante enrugadas. Certamente eram gravatas que estavam guardadas há anos, passadas de moda.

Fui uma vez a um funeral em que o cadáver, pai falecido dum amigo meu, tinha o rosto tapado por um pano branco rendado. Perguntei a outro amigo porque razão teria a face oculta, se teria sofrido de algum problema de pele e estivesse desfigurada. Não soube responder-me e mantive-me na ignorância…

Nalgumas fotografias do imediato pós-guerra pude ver que as pessoas levavam uma braçadeira preta. Era um sinal que se mantinha bastante tempo depois da cerimónia fúnebre.

Na escola, de vez em quando, aparecia um camarada com braçadeira negra. Se na rua encontrava alguém conhecido com uma dessas braçadeiras, logo lhe perguntava quem tinha morrido, e dizia: “Sinto muito”. A braçadeira preta rapidamente era compatível, no entanto, com o ir ao cinema ou ao futebol. Não sei se alguém a retirava numa escapada nocturna.

Creio que as crianças não a usavam, pelo menos as mais pequenas Mas chagava um diaem que já tinham de a colocar, e isso queria dizer que se tinha dado o passo da infância para a adolescência.

Havia um luto rigoroso, que durava um tempo indeterminado e, na continuação, começava o período do meio luto. Hoje, isso desapareceu, sobretudo nas cidades. No mundo rural, no que dele resta, as mulheres mantêm longos períodos de luto negro integral.

Ainda não compreendi o porquê de aquele pai daquele meu amigo tinha a face oculta dentro da sua última morada de madeira envernizada e almofadada.

O preto não é símbolo de luto: o preto é moda. Antes, a braçadeira era uma manifestação social de dor, como a entrada das casas que tivessem as portadas fechadas. A morte, pois, manifestava-se na rua.

E agora, já o disse e todos o vemos, o preto está na moda. Camisas, blusões, casacos, calças…

O preto é amplamente popular, nalguns casos, elegante. Desapereceram a gravata e a braçadeira, nunca se fala do fumo na lapela, sinais imbólicos.

A generalização do preto em rapazes e raparigas cheias de vida, talvez signifique que se apoderaram dos símbolos da morte e que, quando os convertem em estética quotidiana, a morte vai deixando de ser visível.

Apetecia-me andar de luto prolongado pelo meu país social…

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